O Estado de São Paulo : 19.03.2018

Os crédulos afiançam que Jesus teria se submetido a três tentações no período de 40 dias em que jejuou no deserto. No final, deu tudo certo. Ele resistiu às propostas ofertadas pelo Diabo e o mundo é o que vemos hoje (imaginar como tudo seria se as tentações não tivessem sido rechaçadas é um bom tema para um filme distópico). Aqui em nossa vida mundana, também teremos que enfrentar nossas tentações. Se resistirmos, nada garante que seremos confortados pelos anjos, como na Bíblia, mas é seguro que se cairmos em tentação nossa vida será um inferno.

A desistência do governo em tentar aprovar a reforma da previdência frustrou os pessimistas que esperavam uma reação furiosa dos mercados. Foi um não-evento. A estimativa de crescimento do PIB em 2018 continuou subindo a inflação prevista é cada vez menor e a bolsa sobe. “Nem te ligo”, disseram os operadores. O debate sobre o ajuste fiscal, do qual a reforma da previdência é apenas o primeiro passo, deve ser exposto a três tentações em 2018. A primeira é a própria natureza da campanha eleitoral. O tema, com suas tecnicalidades que afrontam o senso comum, está longe de ser popular. Promover o ajuste fiscal é escolher quem vai pagar a conta, mas o discurso em campanha é impregnado do otimismo dos vitoriosos, não do sacrifício dos perdedores. Candidatos populistas certamente negarão o problema. Mesmo candidatos em dia com a matemática tenderão a minimizar sua gravidade. O primeiro risco, portanto, é acreditar nos candidatos e relevar a urgência de um ajuste fiscal rápido e significativo. Nossa percepção de urgência poderá ser amortecida, com o que flertaremos com o perigo.

A segunda tentação será alimentada pela própria recuperação da economia. Com a volta do crescimento, a arrecadação também está aumentando. A contribuição previdenciária dos trabalhadores do setor privado registrou uma expansão de 5,3% nos doze meses terminados em janeiro último, contra igual período anterior. Este é o maior crescimento desde setembro de 2015. Não é muito, mas pode animar os que pensam que o problema do ajuste fiscal é apenas a recessão e que o crescimento sozinho pode resolver tudo. Também a queda dos juros pode desmobilizar os ânimos. Juros mais baixos implicam despesas menores para o governo federal, mesmo considerando que a dívida pública ainda aumenta. Aqui também o risco é pensar que o pior já passou e que o desequilíbrio fiscal é provocado apenas pelos juros altos. Ouviremos muitas vezes esta parvoíce durante a campanha eleitoral.

A última tentação é se deixar enlevar por um certo otimismo fatalista que impregna parte do mercado financeiro. Neste caso, a crença é que o ajuste fiscal é inevitável – não há porque nos preocuparmos. O debate sobre a reforma da previdência já amadureceu a ponto de torna-la uma consequência inescapável. De mais a mais, temos a legislação que nos impõe o teto de gastos e a regra de ouro que coíbe o endividamento desenfreado. Esquece-se, no entanto, que na ausência de um ajuste fiscal significativo estes instrumentos legais serão atropelados pela impossibilidade de sustar o pagamento de despesas que serão interpretadas como direitos adquiridos. Não há nada consolidado. Sequer o diagnóstico de que teremos que promover um forte ajuste nas contas públicas é consensual. Confiar no senso comum é aposta de alto risco. São grandes as tentações para relevar a urgência de medidas que controlem o crescimento do déficit público. Podemos nos esquecer dele, por ora. Fingir que não existe. Mas ele não esquecerá de nós.

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com