O Estado de São Paulo: 13.11.2017

O desfecho da reforma da Previdência lembra a frase otimista de Câmara Cascudo: “ O Brasil não tem problemas, só soluções adiadas”. Ficou para depois. Olhando de longe, pode parecer que a aposentadoria precoce de uma reforma ampla não faz o menor sentido. Mas basta aplicarmos o enfoque econômico baseado na maximização de uma função objetivo sujeita a custos e benefícios para encontrarmos alguma lógica neste desfecho aparentemente desarrazoado.

Há quatro personagens neste enredo, cada qual com objetivos distintos. O primeiro personagem, Temer, foi obrigado, depois da divulgação das gravações da JBS, a alterar sua rota. Seu objetivo, inicialmente, era ser citado com alguma indulgência nos livros de história do Brasil, diluindo sua enorme impopularidade atual. Isto exigia levar adiante reformas que mudassem a cara do país. O escândalo das gravações forçou uma mudança. Agora trata-se de coisa mais básica : evitar ser despejado do Palácio do Planalto. Para isso, também foi necessário alterar a estratégia de negociação com o Congresso, o segundo personagem. Do ponto de vista dos parlamentares, o objetivo primordial é garantir a reeleição. Logo, eles podem até aceitar votar medidas impopulares, desde que recebam em troca benefícios, na forma de cargos e liberações de verbas, que mais do que compensem o impacto negativo que o apoio à mudanças nas regras de aposentadoria provocam sobre seu eleitorado. Também é fundamental para eles que medidas impopulares sejam propostas e aprovadas o mais rápido possível, já que contam com a memória curta dos seus eleitores. A posição relativa dos parlamentares melhorou bastante com a alteração do objetivo de Temer. No jogo da reeleição, eles ganharam um bônus e avançaram várias casas, já que agora podem ter acesso às oferendas do Governo sem o fardo de votar uma reforma genuína da Previdência. O terceiro personagem é o próprio Ministro da Fazenda, que pode não voar alto, mas nem por isso deixa de se considerar um animal com asas. Seu objetivo é se resguardar. Sendo potencial candidato a presidente, para ele é conveniente agir com moderação, ou seja, pressionar pela reforma nem tão pouco que o faça desmerecer o apoio do mercado financeiro, nem em excesso, a ponto de irritar seus possíveis eleitores em 2018. Colocar o cargo à disposição se a reforma não for aprovada, por exemplo, é cartada que não faz sentido neste contexto. O último personagem desta trama é o próprio eleitorado. Ele não acredita que a reforma da Previdência seja necessária, como mostram as pesquisas. Seu objetivo é não pagar uma conta que julga não ser sua. Prefere acreditar que o profundo desequilíbrio fiscal que vivemos é só fruto da má gestão e da distribuição de privilégios – dos quais não se julga nunca titular. Para o eleitor, melhor também empurrar com a barriga.

É doce imaginar que todos deveriam pensar no país, mas fica mais fácil entender o que acontece no Brasil se assumirmos que cada personagem representa grupos de interesses que tem objetivos específicos, não necessariamente convergentes. Do conflito entre estes objetivos resulta algum tipo de encaminhamento que pode ser benéfico ou danoso ao país. Muitas vezes, a forma de conciliar este conflito é avançar nos recursos do Estado, do que resulta um desequilíbrio fiscal crônico. Mudar esta dinâmica exige uma nova arquitetura institucional, o que inclui uma reforma política que não está à vista. Também não se vislumbra nenhuma liderança política forte o suficiente para convencer o eleitor de que o ajuste fiscal é imperativo – e que não poderá ser feito sem perda de direitos. Enquanto isso, vagamos à deriva, ao sabor dos ventos dos interesses organizados. Como dizia Roberto Campos, um lúcido pessimista, “o Brasil jamais perde a oportunidade de perder uma oportunidade”. Não será diferente desta vez.

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com