O Estado de São Paulo : 16.10.2017
São conhecidos os problemas que batem à nossa porta e exigem soluções urgentes. Um encaminhamento para a crise fiscal, por exemplo, é inevitável, agora ou no próximo governo. Isto é grave – mas não é tudo. Além dos problemas emergenciais, questões de fundo também nos espreitam e exigem respostas. Este é o caso da profunda desigualdade na distribuição da renda, tema recorrente que marca uma das mais perversas especificidades brasileiras.
Até recentemente, tínhamos o singelo consolo de imaginar que o forte crescimento da economia no início do século havia bafejado uma aragem distributivista. Afinal, a renda per capita brasileira cresceu 33% nos dez anos terminados em 2013, período em que o salário mínimo aumentou 73% acima da inflação. Dados mais recentes, no entanto, contam uma história mais complexa. Em artigo publicado em agosto de 2017 (“ Extreme and Persistent Inequality : New Evidence for Brazil Combining National Acounts, Surveys and Fiscal Data”, World Inequality Lab), o economista Marc Morgan avalia que em 2015 a parcela dos 1% mais ricos auferia uma renda anual de US$ 541 000, o que é algo como 10% acima da renda média deste mesmo percentil na França. Esta parcela da população – 1,4 milhões de adultos – registrou entre 2001 e 2015 um aumento acumulado na renda de 31,4%, mais que o crescimento da renda da população como um todo (18,3%) e também mais que o crescimento da renda da parcela dos 50% mais pobres (28,7%). Entre os ricos, a concentração também aumentou. As 0,1% pessoas mais ricas (142,52 mil ) tiveram um incremento neste período de 55%. Tem mais: os bilionários brasileiros (0,001% da população adulta, não mais que 1425 pessoas) viram sua renda crescer nada menos que 122% nestes anos. Este pequeno grupo de bacanas abocanhou quase 4% da renda nacional em 2015 e capturou 13,8% do crescimento da renda do período analisado. A renda que menos cresceu foi a da classe média, definida como a faixa que fica acima dos 50% mais pobres e abaixo dos 10% mais ricos. Aqui o aumento foi de apenas 11,5%. A grande inovação do trabalho de Morgan foi ter incorporado em sua análise fontes adicionais de dados, em especial as informações do imposto de renda das pessoas físicas, tornadas disponíveis recentemente pela Receita Federal. Ainda que a sonegação não possa ser desprezada, os números ali dispostos são mais fidedignos do que os obtidos através das pesquisas individuais que embasam os números do IBGE .
Ninguém deveria ficar surpreso com estes resultados. O caráter excludente da sociedade brasileira tem origens atávicas e a política econômica apenas reflete esta inclinação. Temos pelo menos, três formas de promover a desigualdade. A primeira é o modo pelo qual o Estado arrecada recursos. Nossa estrutura tributária é regressiva, ou seja, os mais pobres pagam proporcionalmente mais impostos. Estudo recente do Oxfam (“ A Distância Que Nos Une”, 2017), mostra que pessoas que ganham 320 salários mínimos mensais pagam uma alíquota efetiva de IR que é 75% menor que a paga por pessoas que ganham entre 15 e 40 salários mínimos. A segunda alavanca para a concentração de renda é a forma como os recursos públicos são gastos. O exemplo conspícuo de distorção é o das Universidades públicas, que oferecem gratuidade para quem pode pagar, ao passo que o ensino básico, de baixa qualidade, é reservado aos pobres. A persistência de juros extremamente elevados, por fim, completa o quadro que transforma o Brasil em uma máquina de produzir desigualdades. Juros altos, por definição, são uma dádiva para os mais ricos – e um flagelo para os endividados. Da capacidade de enfrentarmos a questão da iniquidade depende o país que queremos construir. É até possível crescer com concentração de renda, mas isto leva apenas ao sectarismo. Ou vamos todos juntos ou não vamos a lugar algum.
Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com