O Estado de São Paulo : 14.11.2016

A esta altura, já está claro que a recuperação dos índices de confiança após o impeachment da presidente Dilma (lembra dela?) não foi acompanhado pelo aumento, mesmo tímido,  da produção e da renda. O elixir da confiança não foi capaz de transformar intenção em gesto, frustrando as análises mais otimistas. Afora a falta de um polo dinâmico para rebocar a economia do lamaçal da recessão, o alto grau de endividamento também ajuda a entender porque o crescimento, quando vier, será modesto.

H. Minsky foi um economista americano que ganhou grande notoriedade na crise de 2008. Para ele, o sistema financeiro carrega uma tendência endógena à instabilidade. Fases de prosperidade semeiam contradições que acabam por redundar em crises, um raciocínio que se assemelha ao materialismo dialético que tanto se distancia da economia convencional. Uma crise de crédito se configura quando os bancos, após uma fase de expansão de seus ativos, reduzem a concessão de novos empréstimos, com o que deflagram uma profecia auto realizável:  a tentativa individual de evitar uma crise de inadimplência provoca, ela mesma, a crise que se quer evitar. A expansão do crédito nos anos dourados foi absolutamente espetacular. Entre 2003 e 2014 o saldo total de crédito no Brasil cresceu 298,5% acima da inflação. Como proporção do PIB, o total de empréstimos saiu de 22% no final de 2002 para o pico de 55% em agosto de 2013. Caiu um pouco deste então e em setembro último cravou 51%.

Uma das bizarrices excêntricas da defunta Nova Matriz Econômica foi tentar alongar, na marra, o ciclo de crédito quando a economia já dava sinais de fraqueza. Em 2011, quando a economia cresceu 3,9%, a expansão de empréstimos do sistema financeiro privado foi de 20%, muito parecida com a dos bancos públicos, 21%. Em 2012, no entanto, quando o crescimento do PIB recuou para 1,9%, o saldo de crédito dos bancos privados aumentou apenas 9,4%, mas o crescimentos dos empréstimos dos bancos públicos saltou para 26%. Na tentativa de evitar a recessão, o governo cortou juros quando não podia e instou os bancos públicos a continuarem uma expansão insana do crédito. Deu tudo errado. Os juros tiveram que ser elevados para enfrentar a inflação. O aumento da inadimplência levou a um aumento do spread bancário, que passou de 11,7 pontos percentuais em março de 2013, quando a Selic estava em 7,25% para nada menos que 23,4 pontos em setembro último, magnificando o efeito contracionista.

O caso do financiamento de automóveis é uma boa ilustração de nossa saga consumista. Entre 2008 e 2012, o saldo de financiamento de veículos aumentou, em termos reais, 133%, número altíssimo, já que neste período tivemos a recessão de 2009. Neste intervalo, 12,8 milhões de carros foram licenciados, mais do que a soma dos dez anos acumulados até 2007.  Mas tudo mudou. Nos três anos seguintes, o crédito caiu 29% e o número de carros novos recuou 23%. Em 2016, a queda se intensificou e a produção de veículos leves deve ficar no patamar produzido em 2004. São números superlativos, compatíveis com a gravidade do equívoco da politica econômica de tentar estimular o consumo a qualquer custo.

Passamos anos nos entupindo de crédito.  Quando o sistema bancário iniciou uma purgação de seus exageros, o governo interveio para  aplicar esteroides anabolizantes que alongaram artificialmente o ciclo de expansão. O resultado vemos hoje. Os erros do passado foram um saque a descoberto sobre o futuro. O futuro chegou. Nossa lenta recuperação será o preço a pagar, agora com juros.   

Economista. Foi  diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com