O Estado de São Paulo : 05.09.2016

Boa parte dos analistas econômicos se encanta com a tese de que a taxa de câmbio deve ser deixada livre para flutuar o que lhe aprouver. Ao governo cabe apenas cuidar de suas contas. Uma intervenção na taxa de câmbio resultaria apenas na introdução de um artificialismo, que cedo ou tarde feneceria sob o jugo das forças livres do mercado – este sim sabe qual é o câmbio correto. São os fundamentos, esta entidade mágica, que definem onde deve estar  a taxa de câmbio.

Desde o Plano Real , pode-se identificar cinco fases na trajetória do câmbio. O virtual congelamento do câmbio vigorou de 1994 até o final de 1998. Ajudou a derrubar a inflação, mas fez o déficit de transações correntes de US$ 676 milhões em 1993 se multiplicar por cinquenta em 1998. A corda esticada se rompeu e nos dois primeiros meses de 1999 o dólar se valorizou 70%. Em ritmo menos alucinante, a trajetória continuou de forma quase monotônica até o pico de R$ 3,90 (o equivalente a R$ 9,60 hoje, atualizado pela inflação) no final de setembro de 2002, às vésperas da eleição de Lula.  A terceira fase começa com Henrique Meirelles no Banco Central. Em seu discurso de posse , em 7 de janeiro de 2003, Meirelles beijou a cruz do câmbio flutuante  e garantiu que “ esse regime mostra-se adequado, pois absorve diretamente parte dos choques externos … e  ajuda a assegurar que a demanda por divisas se iguale à oferta, sem exaurir as reservas internacionais do BC”. Esta ideia não é exatamente nova. A passagem remete ao mecanismo de ajustamento automático do balanço de pagamentos expresso em 1752 por David Hume, um dos pais do liberalismo econômico. O dólar valia naquele dia R$ 3,34. Ao entregar o cargo para Alexandre Tombini  em 3 de janeiro de 2011, a moeda americana valia apenas R$ 1,65. Medida ao contrário (em dólares por reais), a moeda brasileira se valorizou 102% durante a gestão de Meirelles, com direito a solavancos durante a crise de 2008. A trajetória de valorização prosseguiu até julho de 2012, com o dólar a R$ 1,56, o mesmo valor de janeiro de 1999, mais de treze anos antes. Novamente, temos um ciclo de valorização do dólar, que alcança R$ 4,04 no final de janeiro de 2016. Foram 159% de apreciação da moeda americana em 54 meses. Vivemos hoje a quinta fase: nova valorização da moeda brasileira. Desde o final de janeiro até hoje a valorização do real é da ordem de 25%.  Na posse do agora ministro Meirelles, em 12 de maio último,  o dólar valia R$ 3,49, não muito diferente dos R$ 3,34 do dia em que tomou posse no Bacen em 2003. De lá para cá, continuou caindo.

A  definição de uma estratégia cambial exige sopesar vantagens e desvantagens. Acreditar que nada deva ser feito, por exemplo, e que os deuses do mercado podem definir a taxa ideal tem a vantagem de dar menos trabalho. Nas condições estruturais da economia brasileira, isto pode significar uma tendência crônica à valorização do real, dada a forte discrepância entres as taxas de juros no Brasil e no exterior. Com efeito, a tentação de grandes especuladores internacionais mandarem recursos  passar uma temporada no Brasil é gigantesca. Estima-se que haja hoje cerca de US$ 13 trilhões investidos em papeis soberanos que pagam taxas de juros negativas. Ao mesmo tempo, o aumento contínuo da expectativa de vida tem elevado as metas atuariais dos fundos de pensão, o que induz investidores institucionais a terem maior apetite a risco. Neste contexto, as altas taxas de juros praticadas no mercado brasileiro juntam a fome com a vontade de comer. Um investidor estrangeiro que comprou títulos do Tesouro Nacional logo após a votação final do “impeachment” da presidente Dilma na Câmara dos Deputados e saiu do país no dia em que o Senado votou seu impedimento definitivo foi brindado com uma rentabilidade bruta de 16,5%, o que equivale a 48 % ao ano. Em menos de três meses, obteve uma rentabilidade que demoraria dez anos para ser conseguida se comprasse, nas taxas atuais, um título do governo americano. Juros muito baixos lá fora e juros muito altos aqui geram uma pletora de investimentos que pressiona a taxa de câmbio para baixo. Para o governo de plantão, a tentação de uma taxa de câmbio valorizada também é grande, por duas razões. Em primeiro lugar, a queda dos preços dos produtos importados ajuda a combater a inflação. Em segundo, permite ao governo a bazófia de dizer que a moeda se fortaleceu porque sua política econômica tem credibilidade. É preciso ter claro, no entanto, que este consórcio de conveniências tem sempre um desfecho atribulado. Nelson Rodrigues dizia que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro. Com a rentabilidade que o governo brasileiro oferece para seus papéis, é de se esperar que o investidor estrangeiro nos ame de paixão. Mas é um amor interesseiro, infiel, embalado ao som de um bolero cafona (sugere-se “Nós somos dois sem vergonhas”, de Lindomar Castilho). Durante o governo Lula, o governo cedeu à tentação da valorização cambial e o resultado foi a desindustrialização prematura, que traz até hoje suas consequências. A produção de bens de capital em junho de 2016, por exemplo, foi menor que a de junho de 2004.

Com dificuldades crescentes para aprovar um ajuste fiscal, o governo poderá se ver na tentação de patrocinar uma nova rodada de valorização cambial, na esperança de reduzir a inflação e os juros. Será um equívoco crasso repetir a receita do governo Lula. Desvalorizar o câmbio não eleva a produtividade da economia, mas permitir que o real deslize para níveis ainda mais baixos será apenas um exercício fútil de populismo cambial, que, como todo amor bandido, cobrará um alto preço mais adiante.       

Economista. Foi  diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com