O Estado de São Paulo : 27.06.2016

A proposta de emenda constitucional que determina o estabelecimento de um teto para o aumento das despesas publicas reflete um diagnóstico correto para a crise econômica. Sem controle das despesas, nada pode dar certo. Daí a admitir que esta é a maneira mais adequada para endereçar o tema vai uma grande distancia. A proposta do teto tem três problemas. Em primeiro lugar, ela é exageradamente ambiciosa do ponto de vista das despesas. Tão ambiciosa que pode não ser viável. Tomemos o ano de 2016 como exemplo. Se a regra do teto já estivesse vigendo, o total de gastos para este ano teria que ser R$ 1,221 trilhão, 10,67% acima do gasto do ano anterior, o equivalente à variação do IPCA em 2015.  O decreto 8784, que definiu o orçamento para este ano, estabeleceu um limite de R$ 1,23 trilhão, o que representa um acréscimo de 11,5% em relação ao gasto no ano passado.  Deste total, os gastos com Previdência devem subir 15,4%, para R$ 436,1 bilhões. Dispêndios com LOAS e Renda Mensal Vitalícia, por sua vez, crescem 15,5%, também acima do teto de 10,67%. Abono salarial e seguro desemprego terão incremento de 26%. O pagamento de servidores e funcionários inativos aumentará 8,51% em 2016. Aqui temos um pequeno alívio em relação ao que seria o máximo permitido. Estas quatro despesas representam mais de 90% do gasto obrigatório e devem aumentar, no consolidado, 13,9%. Pela regra do teto poderiam subir para R$ 846,2 bilhões. Vão atingir R$ 871,1 bilhões, o que gera uma deficiência de R$ 24,9 bilhões. Este valor deveria ser compensado por cortes em outras despesas. Isto colocaria um limite de crescimento para estas outras despesas – todas as despesas que não as quatro acima listadas – de míseros 3,4%. Não parece viável.

Note-se que o exercício acima retrata uma situação extremamente favorável para o governo, já que a inflação de 2015  (10,67%)  foi muito maior que a inflação esperada para 2017 (7,25%,  pela Pesquisa Focus) . Uma queda de 3,42 pontos percentuais, a maior desde 1998. Como o teto é definido pela inflação do ano anterior, ele fica mais fácil de ser praticado quando a inflação está caindo. Mesmo assim, exigiria cortes draconianos nas despesas não obrigatórias. Se ele valesse no ano passado, os gastos poderiam subir apenas 6,41%, a inflação de 2014. Para 2017 também não será simples. A inflação continuará caindo, o que facilita a vida. Mas a folga de gastos de pessoal de 2016 não existirá mais. O reajuste recentemente aprovado para o funcionalismo implicará um aumento de 9,7% para este item de despesa, acima da inflação esperada para 2016 ,e, portanto acima do teto. Será preciso arrochar ainda mais nos outros itens. Primeira conclusão: não basta limitar os gastos. É preciso alterar as regras que geram direitos que elevam as despesas. Sem uma reforma da previdência e a desvinculação dos benefícios ao salário mínimo , a insistência no teto gerará um impasse jurídico entre a obrigação de gastar pouco e o direito de receber muito. Ajudaria muito também se o governo tivesse disposição de discutir tabus como o fim do ensino superior gratuito para alunos de alta renda ou a restrição na utilização do SUS para pessoas que tem plano de saúde privado.

Do ponto de vista das despesas, a regra do teto é muito dura. Mas, ainda assim, ela é insuficiente para estabilizar a relação dívida/Pib em um horizonte previsível. Levando em conta o nível atual de endividamento, a estimativa de crescimento do PIB e as taxas de juros projetadas para os próximos doze meses, o choque necessário para estabilizar esta relação é da ordem de 6,3% do produto . Isto é impossível de ser alcançado apenas pelo lado das despesas primárias. Para a relação dívida/Pib parar de crescer será preciso a recuperação da economia, a queda dos juros e o aumento da arrecadação. A segunda conclusão é que não há ajuste fiscal possível sem crescimento da economia. Além disso, é imperiosa a revisão das isenções tributárias concedidas sob a égide da Nova Matriz Econômica, a retomada urgente dos investimentos em infraestrutura e, se o governo tiver fôlego, a introdução de reformas que permitam a queda dos juros.

O terceiro problema da proposta de um teto para as despesas é sua flagrante contradição com a correlação de forças políticas que sustenta o governo. Se nos livramos das inconsistências das heterodoxias do PT, o que representa grande avanço, estamos ainda presos ao patrimonialismo oportunista do PMDB, do que resultam contradições que saltam aos olhos. O governo que propõe uma medida maximalista como a definição de um teto é o mesmo  que beneficia os Estados com a renegociação leniente de suas dívidas, concede aumentos generosos aos servidores públicos e anuncia estudos para a concessão de financiamento a custo zero (ou seja, doação) de material de construção para famílias de baixa renda (“ Por que eu não pensei nisto?”, deve  perguntar o Ministro Mantega). Esta situação nos lembra o apelo de Santo Agostinho  : “Deus, dê-me castidade e continência – mas não agora”. Assim chegamos à terceira conclusão: o teto não resolve se não for acompanhado por reformas. Mas é duvidoso que o governo tenha condições de encaminhá-las. Até porque não há consenso na sociedade de que elas são realmente necessárias. Será mais difícil do que parece. O governo parece crer que tudo se resume a uma questão de credibilidade e que basta  prometer austeridade para que o crescimento brote naturalmente. Não é bem assim. É preciso romper o pacto que estimula parcelas da sociedade a se organizarem para tirar proveito dos úberes fartos do Estado. Estabelecer um teto para os gastos não toca nesta questão.

Economista. Foi  diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com