O Estado de São Paulo: 23.05.2016

Depois da tormenta, parece que chegamos a um mínimo de consenso sobre o estágio atual da economia brasileira. Uma primeira constatação é que o legado de Dilma é dramático, mas não necessariamente terminal. Isto soa pateticamente otimista e lembra a cena da crucificação de “A Vida de Brian”, do grupo Monty Python (“ Always look on the bright side”), mas pode ser ilustrado com números. A inflação está caindo. Fechou 2015 com 10,7% , mas o mercado espera 6% para os  próximos doze meses e 5,5% para 2017. Caindo a inflação, o Banco Central deve se animar e cortar juros. O trabalho sujo de alinhar os preços relativos foi feito. Câmbio, energia elétrica e combustíveis estão significativamente mais altos que no final de 2014. Do setor externo, só vêm boas notícias. O saldo comercial em 2016 deve bater em US$ 50 bilhões e será o mais alto da história. O déficit em transações correntes vai cair mais de 80% em dois anos. Para completar o quadro, tudo indica que a recessão está perto do fim.

Mas, então, por que tudo parece tão ruim? Porque o cerne, o caroço do problema é a crise fiscal e para isto não há nenhuma perspectiva de solução duradoura. Nos últimos dois anos, a dívida pública bruta do Governo Geral cresceu 43%, enquanto o PIB nominal aumentou 11% e a arrecadação de impostos pela Receita Federal, vitimada pela recessão e por desonerações, cresceu apenas  6,2%. A conta não fecha. Os gastos crescem mais que o produto, a carga tributária está perto do limite e não é possível pagar dívida velha com dívida nova indefinidamente. É aqui que a coisa pega. Há quem imagine que em algum momento os investidores brasileiros que compram títulos públicos duvidarão da solvência do governo federal e se recusarão a comprar novos papéis – ou exigirão juros mais altos. Não é bem assim. O mercado interno para títulos públicos é praticamente cativo e as taxas de juros são determinadas unilateralmente pelo Banco Central. O risco é outro. A falta de um encaminhamento verosímil para a crise fiscal poderá aumentar a percepção de risco no mercado internacional e provocar nova rodada de desvalorização cambial, forçando o Banco Central a aumentar os juros, elevando o déficit – que acelera o crescimento da dívida. O remédio dos juros altos está prestes a se tornar veneno. O próprio ministro Meirelles manifestava este temor anos atrás quando afirmou, em artigo publicado na Folha de São Paulo (“Disciplina ou Abismo Fiscal”,6/01/2013), que “ no momento em que a dívida começa a crescer de forma a sinalizar insustentabilidade no médio prazo, todas as soluções são ruins”.   

Mas ser otimista faz parte das obrigações do governo e mesmo sem o requinte de Guido Mantega o ministro Meirelles segue a mesma regra. O roteiro com final feliz pressupõe que tudo é uma questão de credibilidade, que passou a ser uma palavra mágica. Mais sacrifícios agora para podermos viver melhores dias mais adiante. Parece familiar? Bem, o ministro Levy falava a mesma coisa. Meirelles deve acreditar que desta vez é diferente porque pode contar com o apoio do presidente. Mas Temer teve apoio para nos livrar do desvario de Dilma, não para impor novos sacrifícios. A maioria parlamentar que votou pelo impeachment é ocasional; não significa respaldo para reformas de grande envergadura. Credibilidade não é como a fada do dente, que nos concede desejos. 

A armadilha da relação dívida/PIB é perigosa porque reduzir o déficit significa alguma combinação entre corte de despesas e aumento de impostos, o que tende a ser recessivo. Corta-se o numerador, mas o denominador  também cai, sem alterar muito o resultado da fração. A economia se contrai e a pressão pelo fim do ajuste aumenta. Talvez Meirelles se inspire em um texto clássico sobre o tema que advoga o inverso. Em “Can Severe Fiscal Contractions Be Expansionary ?”, artigo publicado em maio de 1990, pelo National Bureau of Economic Research, F. Giavazzi e M. Pagano argumentam que, sob determinadas condições, a redução do déficit fiscal impacta positivamente as expectativas e faz com que  a menor absorção do produto por parte do setor público permita a expansão do setor privado. Os autores destacam os casos de contração fiscal da Dinamarca e da Irlanda no começo dos anos 80, quando a redução do déficit conviveu com expansão da economia. Mas são situações excepcionais, até porque os dois casos foram acompanhados pela adoção de uma taxa de cambio fixa e forte queda nos juros, algo inconcebível hoje no Brasil. Portanto, sim, ajuste fiscal implica novos sacrifícios, em que pese já termos a sensação de que pagamos pela mesma mercadoria no ano passado.

As condições melhoraram, não há dúvida. O governo interino tem mais chance de errar menos. Meirelles é o “primus inter pares” do mercado financeiro, o que ajuda muito, e sua pouca familiaridade com temas econômicos gerais poderá ser suprida por uma equipe econômica de excepcional qualidade. Mas é ilusório pensar que estamos no limiar de grandes mudanças que lançarão a economia em novo ciclo de crescimento. Até porque não há apoio da própria população. Pesquisa divulgada pela CNI mostra, por exemplo, que 65% dos entrevistados apoiam o estabelecimento de uma idade mínima, mas 83% acredita que esta idade deve ser de 60 anos ou menos – o que não resolve nada. O caminho é longo e a jornada exige muito mais que credibilidade, que é fugaz.  Não há consenso para reformas estruturais e sem elas é difícil imaginar um novo ciclo de crescimento. Saímos da rota para caos, mas será difícil escapar de um longo ciclo de crescimento medíocre. Como é mesmo aquela música que os condenados à crucificação cantavam no filme do Monthy Python ?

Economista. Foi  diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com