O Estado de São Paulo : 08.06.2015
Ufa, ainda bem que passou. Feito o ajuste fiscal, agora cabe esperar pela volta do crescimento econômico, certo ? Errado. É nula a probabilidade de que o Brasil possa iniciar no segundo semestre uma recuperação vigorosa. O ajuste fiscal não foi feito. Há medidas paliativas para nos curar da ressaca de 2014, mas nada foi feito para nos livrar do alcoolismo. As despesas públicas continuam com a tendência de subir a um ritmo superior ao crescimento do PIB, o que nos conduz ao aumento continuo da carga tributária. As poucas medidas aprovadas são parciais, insatisfatórias e de má qualidade. Cortam investimentos e seguram gastos na boca do caixa – o que é insustentável a longo prazo. Mas é o ajuste que temos para hoje. É o máximo que a sociedade brasileira está disposta a conceder. É o máximo que o Congresso pode aprovar. A cruzada solitária do ministro Levy é suficiente para nos desviar da rota do descalabro que se esboçava em 2014, mas não resolve o grave problema fiscal que teremos, um dia, que enfrentar. Fica para depois.
A meta anunciada para 2015 não será atingida. O resíduo que falta para fechar as contas foi preenchido com uma estimativa de crescimento da receita claramente superestimada.Sem um superávit primário suficiente para fazer frente ao pagamento de juros, a relação dívida/PIB subirá novamente em 2015 e as agências internacionais de rating estão de olho neste indicador para eventualmente rebaixarem a nota de crédito do Brasil. A capacidade analítica destas agências é medíocre, mas elas continuam influenciando os mercados. Nos últimos doze meses, a relação dívida/PIB saltou quase cinco pontos percentuais. Parte significativa deste crescimento veio do aumento da custo da própria divida. Há três razões para isto. A primeira e mais evidente é a própria taxa Selic. Com o fervor dos recém convertidos, o Bacen tem praticado taxas de juros crudelíssimas. O subsídio do Tesouro para financiar o BNDES é outro erro do passado que agora cobra seu preço. Por fim, a valorização do dólar tem gerado despesas gigantescas com os swaps cambiais. Apenas em março, mês em que a desvalorização foi mais forte, o custo do swap alcançou RS$ 34,5 bilhões, metade do corte do orçamento, retirado a fórceps.
Por outro lado, se a desaceleração dos gastos públicos não é o suficiente para equacionar o problema fiscal, seu impacto sobre as expectativas e o nível de atividade tem sido avassalador. O IBGE prefere destacar o dado dessazonalizado (0,2% de queda), mas sem este filtro o PIB caiu mais de 3% no primeiro trimestre em relação ao trimestre anterior. Os investimentos caíram o dobro e registraram o menor nível desde junho de 2010. A indústria de bens de capital não deixou por menos : caiu 14,5% nos doze meses até abril em relação a igual período anterior. A produção de automóveis nos doze meses anteriores a abril somou 2,24 milhões, o menor número desde agosto de 2007. O nível de emprego também foi atingido. Nos últimos doze meses até abril, 419 mil postos de trabalho foram cancelados, o pior indicador desde 1999. Apenas o setor de construção civil cortou 287 mil vagas, o que indica que o rastilho de pólvora já alcançou a base de eleitores que garantiu a vitória da presidente Dilma em 2014. A inflação erode os salários e o desemprego avança. Menos pessoas tem emprego e quem tem, ganha menos.
Não há porque imaginar uma rápida recuperação. De onde ela viria ? O consumo das famílias está exaurido pelo alto endividamento, pela queda real da massa de salários e pela inadimplência. Os gastos do governo, por definição, estarão pressionados pelo corte do orçamento. Mesmo os Estados e Municípios, que não tem compromisso com metas macroeconômicas, sofrem com a queda na arrecadação. Poderíamos crescer pelas exportações, mas não só elas pesam relativamente pouco na economia como isto exigiria uma nova rodada de desvalorização cambial, o que eleva o custo dos swaps e aumenta o déficit publico, como visto. Sobram os investimentos privados. O mantra oficial é que a recuperação dos investimentos acontecerá quando o equilíbrio das finanças públicas trouxer de volta a confiança. Confiança é muito, mas não é tudo. É impossível imaginar uma empresa privada tomando decisões de investimento que se desdobram por anos apenas porque o ajuste fiscal supostamente foi feito (e não foi) e porque a dívida pública em relação ao PIB se estabilizou (não estabilizou). Enquanto não houver perspectiva de recuperação do emprego e da renda , o investimento ficará acuado. Para romper este círculo vicioso, o governo conta com um novo programa de concessões. Mas é no mínimo improvável que o sucesso desta rodada seja maior que o modesto programa anterior, até porque os principais atores – as empreiteiras – estão preocupados com sua sobrevivência e a expansão de suas atividades agora ou não é viável ou não é prioritária.
Por mais importante que seja, o ajuste fiscal hoje interessa a poucos. Todos são a seu favor, desde que o ônus recaia sobre algum outro setor. Todos são a favor, desde que seja rápido e indolor. Todos são a favor, desde que seja apenas o rápido preludio de um ciclo vigoroso de crescimento. Um crescimento econômico vigoroso só será possível quando houver liderança política e disposição da sociedade para pactuar um novo acordo que faça o Estado brasileiro caber dentro do Brasil. Na ausência desta discussão mais profunda , o que nos aguarda é um longo período de baixo crescimento permeado por crises políticas constantes. Neste contexto, a queda de Levy, o Solitário, será apenas uma consequência tão natural quanto lamentável.
Luis Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com