O Estado de São Paulo : 15.12.2014
Diz-se dos recém- convertidos que eles demonstram em seu noviciado um fervor capaz de fazer inveja aos fiéis veteranos. Parece não ser o caso da presidente Dilma que, ao escalar a nova equipe econômica, conseguiu decepcionar os seus colegas de crença heterodoxa sem lograr convencer os economistas ortodoxos que sua conversão é genuína obra do arrependimento. Não poderia ser diferente. Ao contrário do presidente Lula, a economista Dilma tem lá suas convicções sobre teoria econômica e sempre demonstrou a teimosia dos que acham que encontraram a Razão.
O núcleo duro desta discussão esta hoje no tratamento do déficit público. Os economistas que a presidente tem como referência gostam da ideia de que o combate ao déficit público é um mal desnecessário, quase um exercício de auto flagelação. Isto porque um corte, ou mesmo – como se propõe agora – apenas a desaceleração das despesas do governo pode contrair a demanda e provocar a queda do nível de atividade, com o que a arrecadação também cai, o que gera nova rodada de cortes e a deflagração de um círculo vicioso que leva à queda da renda e do emprego. Segue daí que a política fiscal deve ser “anticíclica”, ou seja, o déficit deve cair quando a economia cresce e é mais fácil arrecadar mais e deve aumentar quando a economia está crescendo pouco. Outro argumento contra a austeridade fiscal sempre citado nos cânones da “nova matriz econômica” é que cortes de despesas acabam afetando a população mais pobre que depende de serviços públicos. A presidente sempre subscreveu estas ideias e deve ter gostado – ou gostaria – de ler o livro de Mark Blyth (“Austerity : The History of a Dangerous Idea”). A crise de 2008 deu novos matizes a esta discussão. O próprio FMI divulgou estudos em que relativizava a austeridade fiscal e admitia o papel dos investimentos públicos na retomada do crescimento, como mostra artigo de Cornel Ban, publicado no mês passado (“Is there more room to negotiate with the IMF on Fiscal Policy ? “, GEGI Working Papers). Outro texto técnico, do próprio FMI, divulgado em outubro, avalia a literatura econômica recente que busca medir o impacto da política fiscal sobre a renda apenas para concluir que não há nenhum consenso nem sobre sua magnitude nem sobre sua direção (“Fiscal Multipliers: Size, Determinantes and Use in Macroeconomic Projections”).
O novo ministro da Fazenda tem também suas próprias convicções. A questão aqui é mais pragmática que acadêmica. Se olharmos para o passado, está claro que a gastança do governo não conseguiu evitar a estagnação da economia. Se olharmos para o futuro, também é fácil perceber que promover o aumento do déficit público sobrecarrega a política monetária no combate à inflação, o que exige juros mais altos e concentra ainda mais a renda. Pior : em algum momento, a manutenção da política do primeiro mandato implicaria o rebaixamento do “rating” do Brasil , elevando ainda mais os juros que os papéis brasileiros pagam no mercado internacional. A dívida pública bruta no governo Dilma aumentou 47% e continuará aumentando acima do PIB se a mudança anunciada por Joaquim Levy não for implementada.
O problema, no entanto, é que a política econômica de um país não é feita em condições assépticas de laboratório, senão sob o embate de interesses conflitantes. É aqui que a coisa pega. Os equívocos idiossincráticos da ‘nova matriz econômica” não foram capazes de promover a retomada do crescimento. Mas não é certo que a austeridade fiscal possa fazê-lo no curto prazo. Ao contrário, 2015 tem tudo para ser um ano mais difícil que este que reluta em acabar . A adoção de uma meta de superávit primária factível não tem o condão por si só de deflagrar um novo ciclo de crescimento. É condição necessária, mas não suficiente. De onde poderia vir o crescimento ? Certamente não do comércio internacional. O preço das commodities já caiu 8,5% no segundo semestre e a desaceleração da China sugere que vai cair mais. Os consumidores também se veem às voltas com alto endividamento. Pelos dados do Serasa, a inadimplência do consumidor cresceu quase 11% em novembro, contra o mesmo mês do ano passado. Os investimentos públicos, por sua vez, estão emparedados pela inépcia gerencial do próprio governo – perdido em suas múltiplas instâncias – e ,claro, pela desaceleração dos gastos públicos já anunciada . Uma alternativa seria revigorar as concessões de serviços públicos para investimentos em infra estrutura, mas o escândalo da Petrobrás indica que as grandes empreiteiras estarão ocupadas com outra coisa. Sobra o investimento privado, mas aqui também é duvidoso que os empresários possam relevar a dura realidade dos juros altos e baixo crescimento da renda que viveremos em 2015.
A conclusão é que a estratégia do novo ministro leva tempo para dar certo. Mas o tempo econômico não tem a mesma lógica do tempo político, até porque ele não se bifurca. Daqui a um ano, todos os que se opõem à modesta austeridade fiscal que o novo ministro propõe olharão para trás e não resistirão à tentação de dizer que ela não funciona. Ninguém fará o exercício contrafactual de comparar 2015 que teremos com o 2015 que teríamos se a política econômica não tivesse sido alterada. A comparação será, como sempre, linear e o próximo ano pode ser, em muitos aspectos, pior que 2014. Este será o verdadeiro teste para a conversão aos paradigmas da ortodoxia econômica. O risco é que a presidente se comporte como um doente que aceita abandonar os florais de Bach em favor da quimioterapia, mas impõe a condição de que a cura seja certa, rápida e sem efeitos colaterais.
Luis Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com