O Estado de São Paulo : 03.02.2014

A cena é usual no verão paulistano. Após um calor de estourar salsicha, vem a chuva  torrencial no início da noite. O helicóptero a serviço do programa sensacionalista de TV flagra um ônibus parado no meio da enchente. O  nível da água se aproxima das janelas. As pessoas acenam aflitas. O apresentador explora a possível tragédia ao vivo, mas logo se tranquiliza : os bombeiros devem já  estar a caminho. Se não chegaram até agora é porque estão atendendo outra ocorrência, mais grave. Logo virão e tudo vai dar certo. Não se sabe de onde ele tira esta informação. Os bombeiros gozam do  benefício da dúvida. Não há crítica à morosidade no atendimento. Não há a tradicional peroração sobre o volume de impostos pagos e a má qualidade dos serviços públicos. Não se insinua que os bombeiros estão acabando uma partida de sinuca. São heróis que se atrasaram, mas ainda heróis. O nome disto é credibilidade.

A inflação de 2013 fechou em 5,91%, sete centésimos acima do ano anterior, bem abaixo do índice de 2011 (6,5%) e exatamente igual ao indicador de 2010. Foi o suficiente para que analistas mais exaltados caracterizassem esta performance como “fiasco” ou “fracasso”, lembrando que a inflação pode subir mais e ficar fora de controle. “Não é pelos sete centésimos”, poderiam dizer, sublinhando que o quadro geral da economia brasileira no ano passado se deteriorou. Ainda assim, há um evidente exagero em antecipar o fim do mundo. O nome disto é falta de credibilidade.

A presidente Dilma recentemente atribuiu o pessimismo à guerra psicológica, misturando um conceito bélico a uma conveniente teoria conspiratória.  Mas o fato é que o governo construiu o seu descrédito com esmero através de pensamentos, palavras e obras. A desconfiança não é obra do acaso nem foi ardilosamente forjada.  Basta  nos lembramos das inumeráveis previsões  erradas sobre  o crescimento do Pib. Ou da tentativa patética de maquiar os resultados fiscais . Ou da estultice de tentar tabelar a taxa interna de retorno nos leilões de concessão. Ou das idas e vindas, desencontros e rodopios da política cambial. Pagamos hoje pelos erros que o governo cometeu – mas a perda de credibilidade faz com que paguemos também pelos erros que o governo parece ter cometido.  Somos onerados pelo malefício da dúvida. Assim, fica mais caro.

Reverter este quadro não é simples. De nada adianta propugnar  a esta altura por reformas de fôlego. Elas não vingaram antes , quando as vacas engordavam, e não será agora que poderão prosperar. O raio de manobra da política econômica ficou muito estreito.  É néscio supor que o governo  empurraria  o país para uma recessão  às vésperas de eleições presidenciais para colocar a inflação no centro da meta. Também é inviável  a curto prazo um choque de eficiência que melhore a qualidade  dos serviços públicos ou medidas de fundo que alterem a estrutura dos gastos públicos (alguém se dispõe, por exemplo,  a discutir porque o Tesouro gasta mais com a previdência dos militares do que com o bolsa família ?  Claro que não).  No campo das ações práticas, pouco de novo poderá  ser feito em 2014 . Mas é possível ganhar pontos na batalha das expectativas  buscando a recuperação gradual da confiança dos mercados, agora mais exigentes diante da perspectiva de elevação dos juros internacionais.  Um gesto talvez baste, mas o governo pode fazer dois.

Poderia, por exemplo, apoiar um dos projetos de lei que regulamenta a independência do Banco Central.  Para muitos efeitos práticos, o Bacen já conta com razoável independência, a começar pelo fato de que a Constituição Federal   veda, no artigo 164, que faça empréstimos direta ou indiretamente ao Tesouro Nacional.  Há extensa literatura especializada com propostas de medidas  de independência (uma síntese pode ser encontrado no artigo de King Banaian, “ Measuring Central Bank Independence : Ordering, Ranking or Scoring ? “) . Nosso Banco Central já tem baixa rotatividade de diretores , mesmo sem mandatos, já é o encarregado exclusivo de  definir a taxa de juros , não financia gastos do governo e conta com profissionais de grande experiência e reputação recrutados nos próprios quadros da instituição. Passa pela cabeça de alguém que Tombini possa ser demitido porque elevou juros às vésperas da eleição ? Alguém cogita que ele possa ser substituído por um sobrinho de um senador do PTB ? Por que não formalizar tudo isto que já se pratica ?

Outro gesto que poderia  configurar um avanço institucional notável seria colocar em funcionamento o Conselho de Gestão Fiscal, previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada em maio de 2000. O objetivo deste fórum , a ser composto por representantes de todos os poderes e entidades técnicas não governamentais , é acompanhar e avaliar a política fiscal.  O Conselho ganharia maior substância se ao mesmo tempo o governo anunciasse uma meta factível e relevante como, por exemplo, eliminar o déficit nominal em três ou quatro anos. Isto não resolve nosso problema fiscal, mas poderia resgatar um mínimo de credibilidade, sem o que o anúncio de metas será apenas mais uma promessa.

Se levados a sério , estes gestos  poderiam servir como antídoto ao risco de um rebaixamento das agências de rating, evitando nova desvalorização cambial, que elevaria a inflação  , corroendo salários e tornando os eleitores mais dispostos a votar na oposição. Atendem, portanto, aos interesses do Brasil e, simultaneamente, ao interesse eleitoreiro  do governo. Irritarão, certamente, os grupos mais à esquerda do PT, mas não a massa de eleitores, para quem estes dois temas não importam. O governo já  ajoelhou no altar de Davos e beijou a cruz. Agora é só rezar .

Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com