O Estado de São Paulo: 10.12.2012
As crises, muitas vezes, purgam as ideias. Uma das situações mais desconcertantes nos últimos anos foi o depoimento de Alan Greenspan ao Congresso americano em outubro de 2008.Ali, diante dos deputados, um humilde senhor de 82 anos foi forçado a admitir candidamente que a ideia de auto regulação dos mercados era falaciosa . “O edifício intelectual desabou”, nas suas palavras. O estouro da bolha imobiliária, algo antes considerado altamente improvável pelo próprio Greenspan, abalou a crença de que os bancos necessitavam de pouca regulação, já que, argumentava-se, eles não agem como lemingues suicidas e a defesa dos seus próprios interesses seria suficiente para evitar um desastre. O conceito de que os mercados se regulam automaticamente é antigo e deriva da tese de que o esforço de cada agente econômico na busca de seus objetivos individuais tem o condão de promover o interesse coletivo, algo que a “mão invisível” de Adam Smith já sugeria na Teoria dos Sentimentos Morais, de 1759, livro que antecede “ A Riqueza das Nações” (1776). Os economistas modernos ampliaram e distorceram a concepção original de Smith para concluir que a regulação dos mercados era prescindível. Daí a reação estupefata de Greenspan, genuinamente decepcionado com a constatação de que os mercados falham.Dizia Millor Fernandes que uma ideologia quando fica bem velhinha vem morar no Brasil. Não deu tempo desta vez. O fato é que o Banco Central brasileiro nunca aderiu à tese da desregulamentação, para nossa fortuna. Se isto coibiu a inventividade do nosso sistema financeiro, ainda pouco sofisticado, também cerceou a possibilidade de bolhas e crises.
As agruras do livre mercado, no entanto, parecem ter induzido o atual governo a uma nova aventura, em tudo a ele antagônica. Uma coisa é não acreditar na metáfora da mão invisível. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia de 2001, lembra que a razão pela qual é difícil “ver” a mão invisível é que muitas vezes ela simplesmente não existe. Outro enfoque, que parece seduzir quem faz política econômica no Brasil, é acreditar que o funcionamento dos mercados conduz a aberrações que devem ser combatidas com a participação direta do Estado na economia. Um exemplo poderá ilustrar o argumento. Diante da desaceleração do crédito privado, acuado pelo crescimento significativo da inadimplência, os bancos privados adotaram a boa prática prudencial e diminuíram o ritmo de crescimento de seus empréstimos. É assim que se faz se o objetivo for preservar os interesses dos acionistas, como é natural que seja no capitalismo. Os bancos públicos, ao contrário, foram instados a acelerar quando a estrada ficou mais sinuosa e o tempo fechou. O que fazer se o dinheiro emprestado não retorna? Emprestar mais, diz a lógica estrambólica do controlador dos bancos estatais. Forçar os mamutes estatais a empurrarem os bancos privados na direção da expansão da economia apenas coloca em risco, desnecessariamente, o dinheiro do contribuinte, que poderá pagar a conta da inadimplência mais adiante (o argumento de que a qualidade de crédito não se deteriorou é precipitado, já que toda carteira melhora quando recebe o influxo de novos empréstimos).
Ganharíamos todos se o governo acreditasse que uma de suas funções é estimular a concorrência entre os agentes privados, combatendo as imperfeições de mercado que limitam a função alocativa da “mão invisível”. Uma distorção frequente no mercado bancário brasileiro é a presença de informação assimétrica. A assimetria de informação contraria o credo neoliberal e ocorre quando uma das partes detém mais informação do que a outra, abrindo espaço para uma transação não equitativa. Se o objetivo for o de estimular maior eficiência no setor, empurrando para baixo as taxas de juros, seria mais oportuno promover maior concorrência, o que implica restringir a informação assimétrica através de medidas que aumentem a transparência. Três iniciativas poderiam ajudar neste sentido. A primeira é retomar as discussões sobre o cadastro positivo. Da maneira como está regulamentado, teremos que esperar anos para que isto tenha algum efeito prático sobre a precificação do risco e as taxas de juros. Outra providência, esta simples, seria facilitar o encerramento e a transferência de contas correntes. Os bancos, em geral, ainda exigem que os correntistas comuniquem por escrito a decisão de romper o relacionamento. Em um pais onde 38% dos universitários são analfabetos funcionais isto significa uma formidável barreira. Se a prática fosse adotada pela indústria automobilística, o Aero-Willys não teria saído de linha. Por fim, a concorrência poderia ser estimulada se os clientes de serviços bancários tivessem acesso a um estrato simplório, padronizado para permitir comparações, que dissesse quanto se paga de serviços bancários por mês. Sabemos quanto pagamos de água, luz e telefone. Mas, quanto pagamos “de banco” ?
O governo parece ter especial prazer em cultivar o hábito de interferir nos mercados com a ‘mão grande’ das estatais, negligenciando a necessidade de corrigir as distorções do mercado para que a concorrência faça o resto. Este dirigismo intervencionista não só sufoca a máquina estatal com tarefas que não lhe são intrínsecas, ocupando precioso tempo que poderia ser usado na definição de uma estratégia de crescimento de longo prazo, como expõe as finanças públicas a um risco desnecessário. É um grande equívoco pensar que os mercados funcionam a contento e as crises financeiras são o testemunho disto. Mas é equivocado também imaginar que o Estado pode suprir diretamente estas falhas.
(*) Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com.