O Estado de São Paulo : 01.10.2012

O regime de câmbio flutuante com metas de inflação parece ter ficado para trás. Feneceu, após vida esforçada, vitimado pelos efeitos colaterais da valorização cambial sobre a vulnerável indústria brasileira. É preciso reconhecer que o governo tinha escasso raio de manobra. Manter a política anterior significaria ampliar o hiato entre crescimento da demanda e o aumento da produção interna, o que seria benigno para a inflação, mas exporia o setor industrial à chuva ácida da concorrência internacional.  Até certo ponto, o empresário brasileiro pode se ver estimulado a investir mais para melhorar a eficiência produtiva e enfrentar a concorrência dos produtos importados anabolizados pelo dólar barato.  Se esta valorização é contínua, no entanto, vale mais a pena remar a favor da corrente e aumentar o componente importado do seu próprio produto – com o que a produção cai. Assim, a demanda interna cresce e vaza para as importações, gerando renda no resto do mundo.

A instauração de um regime cambial semifixo, no entanto, não é isenta de riscos. Os recentes esforços de desoneração tributária representam, a rigor, uma transferência de ônus de setores selecionados para os contribuintes em geral. Uma verdadeira desoneração exigiria uma redução nas obrigações financeiras do Estado, o que está além do alcance e da vontade do atual governo. Mais que isto, estas desonerações implicam melhorias apenas temporárias nas condições de competitividade dos produtos brasileiros. Isto porque – e este é o outro lado da moeda – o impacto favorável da valorização do Real sobre a inflação deixa de existir. O dólar sofreu uma desvalorização de 16% no biênio 2010-2011, o que certamente ajudou a evitar que a inflação ficasse mais alta. O paradoxo é que o  dólar mais caro  que cerceia a invasão de produtos  é o mesmo dólar que torna mais difícil a queda da inflação.

A um problema perene de perda de competitividade o governo reagiu oferecendo ganhos não recorrentes, cujos efeitos se esvaem no tempo. Exagerando, é como carregar com a mão a tartaruga alguns metros e esperar que ela ganhe a corrida contra a lebre. Com o câmbio semifixo, a inflação brasileira vai corroer o ganho instantâneo de competitividade provocado pela desoneração tributária. Como evitar isto?  A tentação mais banal seria retomar o regime de “crawling peg” com o qual nos acostumamos entre 1968 até meados dos anos 1990 (com direito a grandes sustos no meio do caminho).

Controlar o dólar e induzir uma desvalorização em linha com a inflação implicaria, no entanto, dois efeitos deletérios: sobre a própria inflação, que ganharia uma fonte endógena de retroalimentação , o que torna a tartaruga mais lenta, e sobre as finanças públicas, já que  aumenta o custo derivado da  diferença entre os baixos juros no mercado internacional que rentabilizam as reservas e as  relativamente altas taxas de juros internas que oneram os títulos colocados no mercado  para comprar os dólares. Em suma: não dá para indexar o câmbio. Sobra reduzir a inflação. A inflação acumulada de 200 819 549 765 % (sim ,mais de 200 bilhões por cento !)  nos dez anos terminados em 1994  parece não ter sido suficiente para desenvolver em nós uma  ojeriza visceral  ao  crescimento dos preços. Flertamos ainda com uma certa inflação ‘recreativa’, como se ela fosse inofensiva. Nos últimos dez anos, os preços ao consumidor subiram 87,8% no Brasil, contra 27,7% nos EUA, 31,5% na China e apenas 18,1% na Alemanha. O custo unitário do trabalhador no setor industrial aumentou neste período nada menos que 123%. A continuar este ritmo, o principal custo Brasil logo será a própria inflação.

Renovar os votos de combate à inflação exige ousadia política que confronta o senso comum. Quase vinte anos depois de nos livrarmos do encosto da superinflação (tecnicamente, o Brasil nunca teve uma hiperinflação) ainda temos intacta grande parte dos mecanismos de correção monetária. Seria importante extirpar, de uma vez, a indexação diária no mercado financeiro. Isto implicaria substituir finalmente as LFTs por títulos prefixados (algo que o Bacen realiza com a zelosa lentidão de um neurocirurgião) , bem como de seus clones, os fundos DIs.  Para reforçar a eficácia da política monetária, é essencial que uma eventual elevação dos juros reduza o estoque existente de riqueza, o que só é possível se a poupança estiver concentrada em aplicações prefixadas de prazo mais longo. Uma elevação dos juros deveria deixar as pessoas instantaneamente mais pobres, não mais ricas.  O segundo passo, muito mais oneroso, é buscar a desindexação de contratos e salários. O espaço aqui é muito reduzido, a começar pelo fato de que caminhamos na direção contrária e vimos de uma recente superindexação do salário mínimo. Ganharíamos todos se fosse viável o espaçamento dos reajustes contratuais e de salários para períodos cada vez mais longos.

Por alguma razão nefasta, o combate à inflação tem sido associado a uma visão econômica conservadora, como se significasse aversão ao crescimento, o que é non sense com alto teor de pureza.  Não há escolha alternativa entre inflação e recessão.  Como dizia Keynes em “Essays in Persuasion”, não é preciso comparar um mal ao outro. “Ambos devem ser evitados”. Trata-se de um falso dilema aceitar um pouco mais de inflação na expectativa de ter um pouco mais de crescimento. A tolerância com a inflação não vai melhorar as condições de competitividade, além de solapar o crescimento da economia no longo prazo. Não competiremos no mercado internacional em condições de igualdade se não tivermos uma taxa de inflação parecida com a do resto do mundo.

(*) Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central  e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com.