Valor Econômico 31.03.2010

Detratar banqueiros, traders e financistas pelas suas falhas éticas e morais é um passatempo que nunca esteve tão em voga, mas está longe de ser uma novidade. O III Concílio de Latrão, em 1179, já condenava a cobrança de juros com o argumento de que, sendo o tempo uma graça divina, não caberia aos homens tirar dele proveito mundano. Da mesma forma, na Divina Comédia, os usurários foram acomodados no sétimo círculo, o mesmo dos tiranos, assaltantes e suicidas. A julgar pela companhia, deve ser um lugar desconfortável, principalmente, quando se recorda que o inferno são os outros, como pensa muito gente, de Sartre aos Titãs. Para piorar, os usurários estão dispostos no giro 3, enquanto tiranos e assaltantes se alojam no giro 1 e os suicidas no giro 2, mais ameno, justamente porque o pecado da usura é contra Deus, e não contra o próximo ou contra si mesmo. Séculos depois, no rastro de uma crise financeira colossal, é corrente ainda a ideia de que o imbróglio em que nos metemos decorre de deslizes de comportamento que, na ausência de “valores”, prosperaram no campo fértil da cobiça, da ganância, do individualismo e da prevalência dos interesses materiais. Ainda que a defesa do comportamento ético dos agentes do mercado financeiro esteja além de qualquer esforço razoável, o fato é que essa abordagem toma a nuvem por Juno e empobrece a explicação do momento que vivemos.

Mais promissora parece ser a constatação de que a crise atual (assim como as últimas e as próximas) decorre da forma equivocada pela qual se entendeu o mundo, ou seja, das falsas convicções dos homens a respeito das regras de funcionamento dos mercados. Os economistas, como se sabe, são avatares perigosos, principalmente quando suas ideias adquirem ares de verdade incontestável. Como as teses econômicas estão sempre imbricadas em interesses de natureza ideológica e cimentadas pelo comodismo, o avanço da “ciência” é sujeito a contramarchas. A ideia darwinista da sobrevivência dos mais aptos não se aplica ao pensamento econômico. Parece ser esse o caso da hipótese de eficiência dos mercados, pedra angular do pensamento convencional, que tem inspirado a atuação dos principais bancos centrais e agências reguladoras.

A mensagem principal dessa crença é que, sendo os mercados eficientes, os preços refletem consistentemente  todas as informações disponíveis e, neste sentido, estarão por definição sempre “corretos”. A evolução dos preços representa a sucessão de choques externos que gera nova onda de informação, imediatamente incorporada aos novos preços. Parece simples e intuitivo, mas esta forma de se ver o mundo implica pelo menos três consequências práticas elucidativas da crise. Uma primeira derivação é que, sendo os preços sempre corretos, não existem, por definição, “bolhas especulativas”, o que significa na prática que os bancos centrais devem pautar sua atuação exclusivamente no controle da inflação (monitorando o preço da renda e não o preço da riqueza).Isso abriu espaço para surtos agudos de valorização de ativos, rapidamente negligenciados.

Uma segunda consequência lógica é que se os mercados refletem apenas a existência de choques externos, os preços não têm “memória” , e, portanto, sua oscilação, ou seja, seu risco, poderia ser medido a partir de uma distribuição normal (a rigor, lognormal, já que os preços não podem ser negativos). Essa hipótese estimulou o uso e abuso do que se convencionou chamar de VAR (“Value at Risk”), consagrado pelas regras de Basileia. A utilização dessa medida para aferição do risco potencializa o caráter pró-cíclico intrínseco ao crédito, como alertou H. Minsky, tornando as crises mais profundas. Seu uso é ineficaz justamente nos momentos em que as oscilações de mercado são mais fortes, o que equivale a um cinto de segurança que não funciona quando a velocidade do carro aumenta. É fácil imaginar que ter uma metodologia de controle de risco que não funciona em oscilações extremas não só induz a uma falsa sensação de segurança como, nos momentos críticos, acaba ela mesma retroalimentando o próprio pânico, já que a porta de saída é estreita para acomodar o fechamento cumulativo das posições perdedoras. Essa dificuldade poderia ser eliminada com a aplicação da geometria dos fractais desenvolvida por Mandelbrot, o que não é, contudo, prática popular entre os “risk-managers”. Uma terceira e mais abrangente derivação é que sendo os mercados eficientes,  o aparato institucional para seu controle  pode ser progressivamente desmontado, seja porque os mercados se ajustam no final, seja porque a autorregulação dá conta do recado. A supervisão de autoridades regulatórias cedeu assim espaço para o florescimento de produtos inovadores cada dia mais complexos. A esse respeito, o caso da Islândia é muito ilustrativo. Depois de reformas que liberalizaram o funcionamento dos mercados financeiros ao limite do imaginável, os ativos dos três maiores bancos saltaram de 100% do PIB no ano 2000 para 1.000% (sim, mil por cento) do produto em 2008. Esse indicador é algo como 60%, no caso do Brasil. Não por coincidência, esse país protagonizou o caso mais estrepitoso de colapso econômico da atual crise. Mesmo nas economias importantes, como EUA e Reino Unido, a crise foi precedida por uma crescente desregulamentação. O argumento de que o mercado, por meio dos preços, sempre julga melhor que um burocrata é tentador, mas em grande parte a crise atual deriva da lassidão das autoridades que foram convencidas da sua própria inutilidade.

Foram ideias equivocadas dos economistas, não comportamentos socialmente reprováveis que provocaram as dificuldades por que passamos. É da concepção que se faz sobre o mundo e o funcionamento das coisas que são inferidos os marcos institucionais que estimulam ou inibem os usos e costumes. A crise não decorre da falta de valores, da cobiça ou da ganância. Não é pela prática serial dos pecados capitais ou pela disseminação de transações antiéticas que nos metemos nessa enrascadela. Ela foi construída laboriosamente pelos equívocos que derivaram da dificuldade ideológica em se enxergar as instabilidades intrínsecas dos mercados.

* Luis Eduardo de Assis,  economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor do Departamento de Economia da PUC-SP e FGV-SP. É diretor regional da América Latina do grupo HSBC.