O Estado de São Paulo:15.04.2019

Em que pese a singular inépcia do governo em promover as articulações políticas necessárias para a aprovação da reforma da previdência, o debate avança. A destreza nas negociações com o Congresso lembra a habilidade de um açougueiro que, aturdido, pensa ser um neurocirurgião, mas as discussões são cada vez mais esclarecedoras. Há ainda longo caminho a percorrer. Pesquisa recente do Instituto Datafolha mostra que 51% da população ainda é contrária à reforma proposta. Mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, 36% ainda são contrários à mudança.

Na controvérsia, há três equívocos na argumentação favorável à reforma. O primeiro erro é vender a ideia de que a reforma é necessária para liberar recursos para áreas prioritárias, como saúde e educação. Tolice. A principal função da reforma é impedir que a dívida pública continue crescendo a uma taxa superior ao aumento do PIB. Nos últimos três anos, a despesa com benefícios previdenciários pagas pelo Tesouro cresceu 15,5% em termos reais, contra uma queda acumulada do PIB de 1,1%. Esta é uma das principais razões pelas quais a relação dívida/PIB passou de 70% em 2016 para 77,2% no ano passado, o que representa um aumento de R$ 893 bilhões, o equivalente a quase 30 anos do orçamento do Bolsa Família. A economia derivada da aprovação da reforma servirá apenas para evitar que a dívida exponencialmente. Não sobrará dinheiro. Pode-se argumentar que, depois da reforma, a economia poderá crescer de forma mais rápida, o que aumenta a arrecadação e permite gastar mais em outras áreas, mas esta já é outra história.

Um segundo engano é pensar que se a reforma não for aprovada, faltará dinheiro para pagar os aposentados, com o que o governo terá que emitir moeda, provocando a volta da inflação. Ora, ora. Já não há dinheiro, não é de hoje. Há muitos anos o pagamento de benefícios do INSS supera a contribuição previdenciária. Se os aposentados continuam a receber é porque o governo federal, ao contrário do que acontece nos Estados, pode emitir dívida e pagar suas obrigações. E nem assim a inflação escapou do controle. A analogia hidráulica, ao gosto dos monetaristas, é pobre e tem pouco poder explicativo. Por fim, especula-se que a não aprovação da reforma nos lançará instantaneamente no caos e, similarmente, o Nirvana está logo alí, dobrando a esquina, se a reforma passar. Também não é por aí. A reforma já não foi aprovada no governo Temer e estamos aqui, aparentemente vivos. Não aprovar a reforma significa que a relação dívida/PiB vai continuar subindo. Mas ninguém sabe qual é o limite de tolerância dos investidores e a partir de qual momento a economia real vai se esgarçar. Da mesma forma, é ingenuidade imaginar que haverá uma pletora de novos investimentos que aguardam ansiosos nas planilhas a aprovação da reforma. O certo apenas é que a aprovação da reforma é uma condição necessária, mas não suficiente, para a retomada do crescimento, sem o que nenhum ajuste fiscal será duradouro.

A aprovação da reforma não é a remissão de nossos pecados. É apenas o primeiro passo de uma longa caminhada para corrigir distorções de um sistema que é injusto – porque generoso com os mais ricos – e ultrapassado, já que ignora nossas condições demográficas. O Brasil envelheceu sem antes ter ficado rico. Melhor focar o debate nos verdadeiros problemas, ainda que a tentação seja a de explorar ideias mais intuitivas. Passada a fanfarra dos 100 dias de governo, nenhuma música ficará nos nossos ouvidos. Mas o desafio da previdência está lá, nos esperando para o ajuste de contas. Bolsonaro deveria saber que sem reforma a crise política é inevitável. Ruim para ele, pior para nós.

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com