O Estado de São Paulo: 24.12.2018

Escarnecer os funcionários públicos é tentação fácil. Mas é bom ter em mente que foi um servidor do Estado, um barnabé, o primeiro homem a pisar na Lua – assim como os demais desde então. Sem falar de Churchill, Machado de Assis ou Pedro Alvares Cabral, todos a soldo do erário. No caso brasileiro, no entanto, o quadro geral deteriorado sufoca qualquer brilhantismo individual. O IPEA divulgou na semana passado um extenso panorama da burocracia pública (“Atlas do Estado Brasileiro”) que esmiúça nossas idiossincrasias. Décadas de estímulos equivocados acumularam enormes distorções. O numero de funcionários públicos no Brasil passou de 6,3 milhões em 1995 para 11,5 milhões em 2016, crescimento de 83%, contra o aumento da população de 30%. O maior crescimento se deu nos Municípios, que elevaram o contingente de servidores em 130%. Quase 60 de cada 100 funcionários públicos trabalham hoje nas prefeituras. Na distribuição entre os Poderes, o destaque está no Executivo, onde estão alocados 95% dos servidores. O custo total do pessoal empregado no setor público alcançou R$ 725 bilhões em 2017, mais que a metade do total arrecadado pelo Imposto de Renda.

Estudo pormenorizado  de 2017 realizado pelo Banco Mundial (“Um Ajuste Justo : Análise da Eficiência e da Equidade do Gasto Público no Brasil”) registra que o numero de servidores não é exageradamente alto no Brasil. Em relação à população, o funcionalismo representa um contingente de 5,5%, acima da média da América Latina (4,4%), mas bem abaixo do registrado em países da OCDE ou da África, ambos em torno de 10%. Ainda assim, a massa salarial do governo (11% do PIB em 2017) é elevada para os padrões internacionais (no Chile, por exemplo, o índice é de 6,4%). O fato é que os salários do setor público são significativamente maiores que a média do setor privado. Mesmo após considerar as diferenças explicadas pela escolaridade, experiência, localização e gênero, o estudo do Banco Mundial aponta que os salários do setor público são, em média, 17% mais altos que os pagos pelas empresas.   Este número é ainda maior para contratados pelo Governo Federal, que ganham, sempre na média, nada menos que 67% que seus pares que trabalham fora do governo, a mais alta diferença de uma amostra de 53 países. Esta disparidade é extrema no caso dos salários iniciais. Nas carreiras jurídicas do Poder Executivo os salários iniciais são mais do que o dobro pago a advogados do setor privado. Para advogados do Legislativo e do Judiciário, esta diferença chega a três vezes.

São distorções gigantescas que mostram que a gestão de pessoas no setor público tem sido feita à matroca. Há um cipoal de normas em todas as esferas de governo que torna o sistema incongruente e desconexo. Se o novo governo acredita em reformas, é imperativo que não se esqueça de colocar na lista uma reforma administrativa que empurre a gestão dos servidores para o padrão do século XX – hoje estamos no século XIX. Para tanto, deve-se, antes de tudo, uniformizar as regras através de uma nova legislação, a começar pelos funcionários federais. É preciso também dessacralizar o princípio da estabilidade no emprego. Uma coisa é garantir proteção a perseguições políticas e assegurar o funcionamento da máquina, outra é proteger a inépcia e acobertar a incompetência. É fundamental definir metas e métricas para avaliações objetivas, de tal sorte a premiar os bons servidores e promover a meritocracia. O sistema atual fomenta e recompensa a baixa produtividade.  Há muito a fazer, a lista é longa, o tempo é curto. Uma reforma na gestão pública é precondição para o sucesso de outras reformas.

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com