O Estado de São Paulo : 11.06.2018
A barafunda em que se transformou a greve dos caminhoneiros é o desdobramento natural de uma tragédia em três atos. O primeiro foi protagonizado pelos subsídios à compra de caminhões instituídos pela presidente Dilma. Entre 2008 e 2014, cerca de um milhão de caminhões novos foram licenciados, mais que o acumulado nos dezesseis anos anteriores. Uma bolha que estourou com a recessão. Simplesmente há mais caminhão do que carga. O segundo equívoco foi a prática de reajustes diários por parte da Petrobrás, justamente no momento em que coincidiram o aumento do preço do petróleo e a valorização do dólar. Nos doze meses até maio de 2018, o dólar apreciou 15,2%, ao passo que o barril do petróleo avançou 50,7%. Isto significa que o preço internacional do petróleo, em reais, avançou nada menos que 73,6% em apenas um ano, a maior valorização desde março de 2003. Não é preciso um poder de clarividência mediúnico para perceber que isto geraria uma pressão insuportável sobre os caminhoneiros. A vinculação ao preço internacional é inevitável – como é o caso para todas as commodities – e é tolice imaginar que a Petrobrás devesse definir preços com base nos custos de produção. Mas ajustar o preço diariamente, nestas condições, é crueldade que poderia ser mitigada. O último ato tem a ver com a própria incompetência do governo. Em outras condições, talvez os caminhoneiros direcionassem seus mísseis para as empresas transportadoras e buscassem reajustar o frete das mercadorias. O preço da abobrinha, dos remédios e dos sapatos ficaria mais caro. A inflação subiria uma merreca, os brasileiros ficariam um pouquinho mais pobres (porque, afinal, houve desvalorização cambial e aumento do petróleo) e a vida seguiria adiante, com a normalidade anormal a que já estamos habituados. Mas como o governo é fraco, é melhor reposicionar a artilharia e tirar proveito de sua lassidão. Deu certo para os grevistas – e muito errado para o Brasil. A coordenação e a harmonia dos ministros de Temer só podem ser comparadas à de uma escola de samba da Coreia de Norte. A ideia de tabelar fretes e fiscalizar postos de combustíveis é um retrocesso vexatório.
O saldo desta tragédia é que o debate eleitoral ganha contornos ainda mais incongruentes. Pesquisa do Datafolha indicou que 87% dos pesquisados apoiou a greve, mas, da mesma forma, também 87% é contra aumento dos impostos ou corte de gastos federais para financiar o subsídio ao diesel. Talvez esta seja a síntese do momento em que vivemos. O debate econômico lamentavelmente ainda não avançou ao ponto de convencer a população de que não existe almoço grátis. A percepção geral é que o pantagruélico desajuste fiscal poderá ser equacionado apenas pelo combate à corrupção e o corte de privilégios. Não será. É inevitável também rever direitos, já que o Estado brasileiro simplesmente não comporta a voracidade de anseios dos segmentos organizados da população. Houve um tempo em que o conflito distributivo se manifestava na inflação. Ganhava o jogo quem tinha poder de mercado para indexar seus preços de forma mais eficaz. Hoje o conflito se manifesta através do achaque aos cofres públicos, de forma coordenada e institucional. Ganha o segmento que consegue se organizar para extorquir um Estado em anomia. A conta vai chegar. Enquanto nos perdemos na conflagração de interesses corporativistas, o rombo fiscal alimenta o crescimento da dívida pública. O Brasil de hoje não decepciona o mais lúgubre dos pessimistas. Faz lembrar as palavras do poeta Marcelo Montenegro. Estamos em “um cruzamento / onde o semáforo pifou / o futuro é um cartaz antigo/num cinema que fechou”.
Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com