O Estado de São Paulo : 30.10.2017

O idioma alemão tem a deliciosa característica de criar conceitos abstratos através da justaposição de palavras. “Weltanschauung” talvez seja o exemplo mais manjado. “Schadenfreunde” também é popular. Mas existe também “Politikverdrossenheit” , menos cotado, mas muito adequado ao momento em que vivemos. A palavra significa a condição de estar desinteressado ou desencantado com a política. O mercado financeiro parece estar experimentando esta experiência e acalenta a cândida ilusão de que a atividade econômica possa se descolar do labirinto infernal da política brasileira. Os números bem que podem alimentar esta quimera. Enquanto nossos representantes chafurdam com gosto no pântano da ignomínia, a bolsa de valores sobe, os juros caem e o emprego aumenta. Descolou? Como assim?

Há três argumentos para se defender a ideia de que a economia pode se descolar dos ardis da vida política. A primeira é imaginar, ingenuamente, um alheamento completo das duas atividades. Assim como o Brasil vai bem no futebol e mal no basquete, seria também possível fazer a economia prosperar a despeito das trampolinices de Brasília. Basta não prestarmos atenção ao que fazem os políticos e trabalharmos duro para engrandecer a Nação. Vidas separadas. Tolice. Uma segunda maneira é acreditarmos em certo fatalismo contábil, muito em voga entre vários economistas. O álibi aqui é assumir que quaisquer que sejam os desdobramentos da crise política e qualquer que seja o próximo presidente, cedo ou tarde o país terá que fazer seu ajuste fiscal, dado que não é possível seguir indefinidamente gastando mais do que se arrecada. Tomara fosse. A analogia frequente entre o orçamento doméstico e as finanças públicas é falsa. Ninguém sabe por quanto tempo poderemos contar com o hímen complacente dos credores da dívida pública, até porque o mercado brasileiro é praticamente fechado e a demanda por títulos públicos é quase cativa. Como não há prazo para este ajuste de contas final, também não há limite para o estrago que a falta de solução para a crise política poderá causar na economia. De mais a mais, a eleição de um presidente com ideias populistas em 2018 (há vários candidatos deste naipe) poderá se sobrepor a qualquer necessidade aritmética de que os gastos e a arrecadação de impostos devam ter trajetórias convergentes. Por fim, há quem pense que a sociedade brasileira já alcançou maturidade suficiente para entender que o ajuste fiscal é uma necessidade incontornável.  Nem Pollyanna, do romance de Eleanor Porter, chegaria a tanto. Para quem nutre a ilusão de que o debate avança e estamos chegando a um consenso, basta lembrar que o relatório final da CPI da Previdência afirma, categoricamente, que “é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social”. Este desvario não é caso isolado: o DataFolha detectou em maio de 2017 que 71% dos brasileiros são contra a reforma da Previdência.

Não há como desentranhar a tímida recuperação econômica das agruras da vida política. Já seria inadequado mesmo se o núcleo duro dos nossos problemas não fosse o ajuste fiscal. Mas o equilíbrio das contas públicas, condição fundamental para que a incipiente recuperação não bata em uma muralha, envolve diretamente escolhas políticas cavilosas. Trata-se de escolher de que forma o ônus do ajuste será dividido. Quem, de que forma, quando e quanto deverá ser pago?  Não há resposta “técnica” para estas perguntas. Será a capacidade de encontrarmos, todos, solução para os impasses políticos atuais que definirá o fôlego da recuperação da economia. A economia depende da política, que a condiciona. Ou somos capazes de avançar nas reformas estruturais ou estaremos fadados ao fracasso econômico. Será que existe alguma palavra em alemão para “não ver o que está diante do nariz”?

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com