O Estado de São Paulo : 10.07.2017
Indagado sobre o que pensava a respeito de sua filha ter posado nua, tempos atrás, Gilberto Gil fez uso de raro poder de síntese: “desnecessário”, afirmou. O mesmo pode ser dito sobre a recente decisão do Conselho Monetário Nacional de reduzir a meta de inflação para 4,25% em 2019 e 4% em 2020. Parece não ser algo ambicioso. A inflação prevista para 2017 está em 3,5%. Será a mais baixa desde 2006. Há dez meses consecutivos que a inflação anual recua. Desde o final de 2015, este índice caiu cerca de 7,3 pontos percentuais. É muita coisa.
Por que a inflação caiu tanto? Um apressado poderia dizer que esta queda reflete a percepção de que o governo conseguiu equacionar os principais problemas da economia. Não é por aí. Há três elementos que podem fornecer explicação mais completa. Em primeiro lugar, é preciso lembrar (como esquecer?) que atravessamos a mais grave recessão de que se tem registro. O número de pessoas desocupadas, por exemplo, passou de 8,2 milhões em maio de 2015 para 13,8 milhões em maio último. Outro fator restritivo foi a conjugação, pela primeira vez em muitos anos, entre juros altos e crédito escasso. Em outros tempos, os bancos oficiais afrouxavam a concessão de empréstimos para tentar contrariar a elevação dos juros por parte do Banco Central. Desta vez, não. Os juros reais explodiram (superam hoje os 9%) e o crédito também foi contido. Entre o final de 2015 e maio último, o volume de novas concessões mensais caiu nada menos que 17,6%, ou R$ 60 bilhões por mês. Juros altos e pouco crédito aprofundaram a recessão. Na falta de demanda, os preços aumentam menos. O IPCA do setor de Serviços, por exemplo, oscilou entre 8% e 9% entre 2011 e 2015, tendo resistido neste patamar mesmo no começo da recessão. Mas acabou vergando sob o peso do desemprego e fechou 2016 em 6,5%; em maio último a variação de doze meses estava em 5,6%. Além da recessão e dos juros altos, a inflação também caiu por uma razão mais prosaica: sorte. O bom regime de chuvas garantiu uma safra recorde e derrubou os preços dos produtos alimentares. O índice de preços no atacado de produtos agropecuários, que tinha registrado um aumento de 31,3% nos doze meses terminados em junho de 2016, acusou uma deflação de 10% no período de doze meses até maio último. O fim da estiagem no Centro-Sul também fez com que o preço da energia elétrica residencial, que subiu 51% em 2015, caísse em termos nominais nos últimos doze meses até maio, o que ajudou a puxar o IPCA para baixo. São Pedro abençoou a política monetária do Banco Central – que sequer lhe deu o devido crédito.
Não resta dúvida que, ao reduzir a meta da inflação, o Conselho Monetário não quis outra coisa senão passar a mensagem de que tudo vai bem. Faz cara de paisagem e diz que não é com ele. Já que a inflação de 2017 vai ficar abaixo da meta, achou conveniente “ancorar” as expectativas, como se os formadores de preço, neste tiroteio, fossem se guiar pela queda de alguns pontos percentuais. O problema é que isto é de pouca valia quando o núcleo de nossos problemas é a combinação entre um déficit fiscal gigantesco e uma crise política histórica. Nós sequer sabemos quem será o presidente do Brasil no próximo mês. Sem a solução para o impasse político, ao qual as escolhas econômicas estão subordinadas, nada pode caminhar para a normalidade. É ilusória a ideia de que a economia possa se descolar da crise política. Sem estabilidade política, não há governabilidade e não será possível escolher quem vai pagar a conta do ajuste fiscal. E sem ajuste fiscal, a economia fenece. Enquanto isto, o governo congela o reajuste do Bolsa Família, libera verbas para emendas parlamentares e consente com a discussão de um fundo público para custear campanhas eleitorais. São escolhas despudoradas que despem o Palácio do Planalto perante a Nação. Desnecessário
Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com