O Estado de São Paulo : 29.05.2017

“Brazil” é um filme de ficção científica de 1985. O diretor, Terry Gilliam, retrata uma visão distópica de um futuro onde predomina o domínio do Estado sobre os cidadãos. Em comum com o Brasil que conhecemos, o filme traz o apreço das mulheres pelas operações plásticas, o tema musical mais conhecido de Ary Barroso (daí o título) e o hábito comezinho de buscar vantagens através de contatos com as pessoas certas no governo. Enquanto as operações plásticas satisfazem vaidades e a Aquarela do Brasil nos inspira, extrair privilégios do Estado tem sido nosso verdadeiro flagelo. Não é coisa nova.  Vem de longe, como mostra o artigo de William Summerhill sobre a promiscuidade entre interesses públicos e privados no Brasil do século XIX  (“ Party and Faction in the Imperial Brazilian Parliament”, em, “ Crony Capitalism and Economic Growth in Latin America, de Stephen Haber).

Também não é maldição apenas brasileira. A revista The Economist calcula um índice internacional que tenta medir o impacto do capitalismo de compadrio. A metodologia é bastante simples e, portanto, sujeita a falhas. Mede-se a relação entre a fortuna pessoal de oligarcas que atuam em setores caracterizados por uma simbiose excessiva com o Estado (cassinos, commodities, petróleo, entre outros) e o tamanho do PIB. Por este critério, a Rússia garante o primeiro lugar no ranking. Lá, os ativos pessoais de empresários ligados a setores que mantem relações perigosas com o governo excede 15% do PIB. Em segundo lugar no ranking da patifaria vem a Malásia, onde praticamente todos os bilionários listados pela Forbes devem sua fortuna a relações com o governo. A posição do Brasil surpreende. Não estamos mal na foto. No ranking do ano passado, ficamos em 15º lugar, entre Reino Unido (14º) e Estados Unidos (16º). Na lista de 2014 estávamos em 13º; o índice diz que estamos melhorando. Há mentiras, malditas mentiras e estatísticas, já dizia Mark Twain.

Seja como for, pensar que há lugares piores não pode nos dar conforto. A delação dos controladores da JBS é um episódio embaraçoso que atesta uma deplorável intimidade entre interesses públicos e privados – um jornalista fez a imagem de que Temer recebeu Joesley Batista no Palácio do Jaburu vestindo ‘pegnoir’, tamanha a falta de cerimônia.  Mas sejamos otimistas, em meio a esta hecatombe. Claro que nada está tão ruim que não possa piorar ainda mais, mas temos hoje uma oportunidade de refletir e tomar medidas práticas para fazer com que regras de mercado baseadas na impessoalidade e no primado da lei avancem e tomem espaço do capitalismo de compadrio. Precisamos de mais mercado, mais competição, e menos licenciosidade.  Para isto, no entanto, é preciso assegurar que delação não pode significar impunidade. Da maneira como foram combinadas as coisas com a JBS, o crime compensa e recompensa. Mas aqui vai o grão de otimismo:  a própria estultice da empresa que, ao que tudo sugere, operou no mercado financeiro com informações privilegiadas tem tudo para ser a chave para reavaliar a premiação excessiva. Só a certeza da impunidade e o completo desprezo pelas leis podem explicar a ideia de jerico de comprar dólares e vender ações da própria empresa de forma irregular. Como estas operações são registradas em todas suas minúcias, isto é tão inteligente quanto um ladrão apontar uma arma para o caixa de um banco e exigir que todo dinheiro seja transferido para sua conta.  A Comissão de Valores Mobiliários tem diante de si a oportunidade de fazer parte da história e mudar o Brasil.

Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com