O Estado de São Paulo : 14.04.2017
Em discurso proferido na Conferência do Partido Conservador em outubro de 1983, Margareth Thatcher foi assertiva: não existe dinheiro público, existe apenas dinheiro do contribuinte. A afirmação é inexata do ponto de vista conceitual. Na verdade, o governo pode criar recursos sem contrapartida nos impostos, como ocorreu, por exemplo, quando os bancos centrais de vários países socorreram bancos através da compra de títulos de suas carteiras, logo após a crise financeira de 2008. Ainda assim, a afirmação da primeira ministra britânica chama a atenção pela necessidade de se segregar dinheiro público de interesses privados e salvaguardar os cofres públicos do achaque de grupos organizados. Analogias entre grandes temas econômicas e a vida quotidiana do cidadão comum podem ser enganosas. Há quem diga, por exemplo, que a reforma da previdência é essencial porque na sua ausência não haverá, um dia, dinheiro para pagar os aposentados. A comparação é com o orçamento doméstico: se você gasta mais do que ganha, chegará o dia em que você não poderá gastar mais. Não é bem assim. A rigor, dinheiro já não há. No ano passado, o déficit da Previdência alcançou R$ 149,7 bilhões, quase o triplo do déficit registrado em 2014, de R$ 56,7 bilhões. Atualizados pelo IPCA médio, os déficits previdenciários desde 2010 somam R$ 542,4 bilhões. Ainda assim, nunca falta dinheiro para pagar os aposentados. Como pode?
Ocorre que o governo brasileiro, ao contrário do que acontece conosco, tem a capacidade de emitir dívida e financiar seus gastos excessivos. Sob determinadas condições, tem ainda o poder de definir a taxa de juros, e, portanto, o custo da própria dívida, e de rolar dívida velha emitindo títulos novos. Onde é que a coisa pega? Para que então reformar a Previdência? Se a reforma da previdência não for aprovada, os aposentados e beneficiários continuarão a receber seus proventos. Mas isto também significará que a dívida pública continuará crescendo a uma taxa vertiginosa. Nos últimos dez anos, a dívida pública cresceu nada menos que 228%, muito mais que os 83% de inflação. A relação dívida/Pib, um indicador de solvência habitualmente monitorado pelas agências de rating, passou de 58% em fevereiro de 2015 para mais de 70% em fevereiro último. A reforma da previdência é um componente essencial de um esforço urgente para equacionar, mesmo que a longo prazo, nossas contas públicas. Sem ela, a manutenção de um teto para aumento do gasto público definido pela inflação do ano anterior, simplesmente não será factível e, cedo ou tarde, será derrubado. É bom lembrar que já perdemos a oportunidade de resolver este problema. Em 2005, o ministro Antonio Palocci (hoje preso, é bom lembrar) propôs zerar o déficit nominal em alguns anos. Teria sido possível, se a ideia não tivesse sido bombardeada pela então ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, que, em entrevista ao Estado de São Paulo, considerou a proposta “rudimentar” e cunhou uma expressão que explica bem porque chegamos aonde estamos: “ despesa é vida”. Nossa Dama de Ferro também tinha lá suas ideias abstrusas.
Uma possível rejeição da reforma da previdência – ou sua mutilação – poderá deflagrar uma sequência de eventos que vão nos deixar com saudades da recessão de 2015-2016. O primeiro impacto provavelmente será sobre o risco Brasil. O governo pode controlar as taxas de juros que paga sobre a dívida interna, mas no mercado internacional a coisa é diferente. Sem a reforma, a percepção de risco subirá. O aumento do risco Brasil certamente virá acompanhado de desvalorização cambial, o que pressiona a inflação. Mais inflação pode levar o Bacen a elevar novamente as taxas de juros, com o que o crescimento se esvai. Poderemos cair em novo ciclo recessivo, o que reduzirá a arrecadação e retroalimentará o crescimento do déficit, e, portanto, da dívida – com o que o risco Brasil sobe novamente, iniciando outro ciclo. Neste ínterim, é possível que a própria inflação alivie a relação dívida /pib, já que as receitas do governo são mais indexadas aos preços do que suas despesas. Vamos queimar a casa para assar o leitão. Mas não, não vai faltar dinheiro para a Previdência.
Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com