O Estado de São Paulo : 26.12.2016
“Criamos um Frankenstein”, constatou o deputado amazonense Pauderney Avelino, após a Câmara aprovar a renegociação das dívidas dos Estados com a União sem a exigência de contrapartidas. O nobre legislador se confundiu. No romance de Mary Shelley, Victor Frankenstein é o cientista que criou o monstro – ao qual não atribuiu nenhum nome. Mas o deputado está certo no essencial. A Câmara pariu um monstro. A ideia da renegociação não é nova. Em março de 2016, o ministro da Fazenda Nelson Barbosa mandou ao Congresso um projeto que previa o alongamento da dívida dos Estados em troca da suspensão de aumentos salariais e de novos incentivos fiscais. O novo governo adotou a proposta , mantendo o princípio básico de que valeria a pena sancionar uma política fiscal expansionista agora se pudesse obter o compromisso de que mudanças estruturais seriam feitas para aliviar o problema do déficit no futuro. Trata-se, portanto, de permitir que os Estados gastem mais no curto prazo , algo que não deixa de ser contraditório com o discurso da austeridade. Mas não há outra alternativa. Vários Estados quebraram e outros tantos seguem no mesmo caminho.
Ao encaminhar a discussão da PEC dos gastos públicos, o governo abusou da analogia com a administração de um orçamento familiar : não se pode gastar mais do que se ganha. A comparação não procede para o governo federal. Isto porque é possível financiar o déficit por um período indeterminado através da emissão de dívida sobre a qual incidem juros que são definidos, em grande parte, pelo próprio governo-devedor. Esta é a razão pela qual a crise fiscal é gigantesca, mas o governo federal não atrasa o pagamento de salários ou aposentadorias. Para os Estados é diferente. Como eles não podem emitir dívidas, a analogia com as finanças pessoais é válida. O acerto de contas com a verdade orçamentária chega mais rápido.
Ao contrário do que se disse, a lei aprovada na Câmara não garante o socorro aos Estados sem a exigência de medidas de austeridade. Não é assim tão ruim. Na verdade, a Câmara lavou as mãos e transferiu ao Executivo a tarefa de negociar com os Estados o que será exigido em troca de um alívio no pagamento da dívida. O governo federal minimizou a derrota na Câmara e afirma que só vai aceitar uma renegociação das dívidas estaduais se puder arrancar em troca o compromisso de medidas de austeridade. Não é a mesma coisa. Se as contrapartidas estivessem registradas em lei, o governo apresentaria aos Estados um contrato de adesão e o fluxo seria fácil. Agora, a abertura de um espaço de negociação tornará o processo desnecessariamente complexo, empurrando Estados e União para um labirinto de avanços, recuos e rodopios. Outro ponto que fica claro é que esta derrota marca o fim da paciência da Câmara com as propostas da equipe econômica que prometem o céu no futuro distante, enquanto os eleitores dos deputados ardem hoje no inferno. Não é de surpreender. Os deputados apenas refletem as dificuldades de convencer o eleitorado que vale a pena apoiar um governo que não conta com a confiança de 72% dos brasileiros.
No livro de Shelley, o monstro convence Dr Frankestein a criar para ele uma companheira depois de prometer que se mudaria para a América do Sul (não há menção, mas é fácil adivinhar o país). Aqui não será necessário prometer nada. Tudo indica que o Congresso produzirá novos monstros em 2017, fatiando e desfigurando os projetos do governo, a começar pela reforma da Previdência. O monstro criado agora não sentirá falta de companhia.
Economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com