O Estado de São Paulo : 08.02.2016
No dia em que foi confirmado como Ministro da Fazenda, em 27 de novembro de 2014, Joaquim Levy, anunciou, cheio de vontade e de certeza, que a meta do superávit primário de 2015 seria de 1,2% do Pib. No embalo, aproveitou para dizer que a meta para 2016 e 2017 não seria menor que 2% do Pib. Parece que isto aconteceu há milhares de anos. O fiasco em relação à meta fiscal foi assombroso. Ao invés de superávit, o setor público em 2015 colheu um déficit primário de R$ 111,2 bilhões, cerca de 1,9% do Pib, mais que o triplo do déficit já pavoroso de R$ 32,5 bilhões em 2014. Note-se que esta conta não inclui as despesas de juros, nada menos que R$ 502 bilhões no ano passado. Tudo somado, o governo gastou R$ 611 bilhões acima do que arrecadou em 2015. Entre 2014 e 2015 o total do déficit público deu um salto de 76%.
De onde vem o dinheiro para financiar este déficit? Basicamente, da elevação da dívida pública. A dívida do governo central, sem incluir estados e municípios, encerrou o ano em R$ 3,93 trilhões, com crescimento de 21% em relação ao ano anterior e 43% em relação ao final de 2013. Desde que a presidente Dilma assumiu seu primeiro mandato, a dívida pública praticamente dobrou de tamanho. A tendência é de crescimento a taxas cada vez mais altas, já que quanto maior a dívida, maior a despesa de juros do ano seguinte, o que aumenta o déficit e, consequentemente, a própria dívida. Caímos em um círculo vicioso que gira cada vez mais rápido.
Há três níveis de profundidade para escarafunchar a causa raiz deste problema. Uma opinião encontradiça se contenta em apontar os malfeitos do PT e os escândalos de corrupção como a origem de nosso desajuste fiscal. É doce a ilusão de que apenas os outros são culpados. Decerto que a sucessão de casos horripilantes de desprezo pelo dinheiro público tem importância histórica, mas isto está longe de explicar a trajetória explosiva do déficit e da dívida. Se nossos hábitos fossem os de uma Suíça (sem a Fifa, claro), ainda assim nosso pesadelo fiscal persistiria. Esta explicação é insatisfatória. É possível cavar mais um pouco e atribuir este “imbroglio” a erros de gestão do governo. Eles são múltiplos e variados. A bizarra Nova Matriz Econômica, por exemplo, acreditava ter descoberto o moto continuo do crescimento econômico, já que assumia que aumento de despesas públicas e a concessão de subsídios fomentariam o crescimento do produto, aumentando a arrecadação e fechando mais adiante as contas fiscais. Ora, se este elixir da prosperidade existisse, não haveria pobreza no mundo. Bastaria o governo gastar, gerar crescimento com este gasto e esperar o aumento da arrecadação para financiá-lo. Convém também colocar na categoria de erros de gestão as desonerações fiscais, os juros subsidiados, as desastradas políticas de contenção de preços de energia e combustíveis assim como os ruinosos swaps do Banco Central, que aumentaram as despesas de juros em R$ 90 bilhões em 2015 (mais R$ 16,8 bilhões, agora em janeiro de 2016) .Tudo isto fomenta o déficit e a dívida pública. Isto também é parte da explicação, mas ainda não é tudo. É preciso perceber que o fulcro do problema do déficit extravasa a corrupção e a incompetência do governo para se transformar em uma questão de Estado. Em obra seminal (“ Institutions, Institutional Change and Economic Performance, 1990) , Douglass North , premio Nobel de Economia em 1993, explicita o papel das instituições para o desenvolvimento econômico e aponta que enquanto o arcabouço institucional dos países ricos é voltado para a promoção da produtividade e da concorrência, os países pobres têm preferência por iniciativas que promovam a redistribuição de recursos existentes, cerceando a concorrência, a meritocracia e abrindo espaço para o compadrio patrimonialista. Já há décadas que nós – nós brasileiros, não o governo do Brasil – optamos por atribuir ao Estado o papel de realocador de recursos, deixando em segundo plano o estímulo à criação de recursos novos. Os números fiscais de 2015 mostram que levamos este modelo de transferência ao paroxismo. O déficit de 10,3% do PIB é o maior da série histórica e mais que o dobro da média do déficit estimado pelo FMI para países emergentes. Pior: ele ocorre com uma carga tributária excessiva, que já não permite rodadas sucessivas de aumento. Pior ainda: ele surge no contexto de um governo acuado, derrotado por sua própria inépcia, que se oferece inerte ao ataque de ladravazes sequiosos de retirar do Erário ainda as últimas gotas de benefícios, isenções e subsídios. O Estado vê-se assim à mercê de interesses corporativistas, organizados na forma de associações, sindicatos e partidos, incapazes de formular um projeto de crescimento que vá além de sua pauta de reivindicações setoriais. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Por esta mesma razão, os cortes de despesas que aliviariam o déficit ou são vedados pela legislação ou são escorraçados por interesses setoriais organizados. Criamos instituições que falharam em estimular boas práticas e nos conduzir ao desenvolvimento da economia.
Não há como escapar da conclusão que não chegamos apenas ao fim de um modelo. Chegamos ao fim de uma era baseada na concepção de um Estado que interfere institucionalmente para realocar recursos existentes. Recentemente, temos sido capazes de atacar a corrupção e seus vícios. Também tudo sugere que nos desvencilharemos das bravatas do modelo econômico do governo do PT, em que pesem as recaídas ocasionais. Mas enquanto não nos livrarmos do conceito de Estado provedor não seremos capazes de eliminar as amarras do nosso atraso.
Luis Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com