O Estado de São Paulo : 04.01.2016
Já faz tempo que o Banco Central acredita que o mercado financeiro é bicho arisco, não pode ser assustado. Melhor evitar surpresas. É por estar razão que a autoridade monetária tem enviado sinais de fumaça com a mensagem que elevará mais uma vez a taxa Selic no dia 20 de janeiro. Será a décima sétima elevação desde que o ciclo de alta começou, em abril de 2013. Neste período, a taxa básica terá mais do que dobrado, saindo de 7,25% para prováveis 14,75 agora em janeiro. O mesmo Bacen que foi leniente com a inflação em 2012 e 2013, permitindo juros reais líquidos negativos, agora reage com sádica fúria.
Podem-se levantar três motivos para subir juros em meio a uma recessão de proporções épicas. O Bacen poderia argumentar, por exemplo, que foi surpreendido pelo aumento da inflação e ficou para trás. Com efeito, se compararmos a taxa Selic de 2015 com a variação acumulada do IPCA teremos juros reais de aproximadamente 2,7%. Como pagamos imposto de renda sobre ganhos nominais (ou seja, sobre a própria inflação) os ganhos líquidos reais em 2015 foram praticamente nulos, o que foi registrado apenas na experiência heterodoxa de 2012-2013, quando a autoridade monetária embarcou na tese furada de que os juros poderiam ser baixados na marra. Na média dos últimos vinte anos, a diferença entre a taxa anual Selic e a inflação foi de estonteantes 9,9 pontos percentuais. Mas, apesar de tudo, o ano de 2015 acabou não sendo tão bom para os rentistas. O segundo argumento para uma nova subida de juros é apontar o dedo para a mediocridade da política fiscal. Dado que pouco foi feito e o resultado fiscal de 2015 é pífio, diria o Bacen, sobrou para nós e a única coisa que podemos fazer é elevar os juros. Se o país não conseguiu por bem um acordo que levasse a um ajuste das contas públicas, agora terá que se haver com a autoridade monetária e aprenderá por mal. Bem feito. Por fim, é ainda possível alegar que a recessão de 2015, a pior dos últimos vinte e cinco anos, não foi suficiente para vergar a inflação dos preços livres, que continua rodando a taxas superiores a 8% ao ano. É preciso mais juros para contrair a demanda e jogar a inflação para baixo. Vocês vão ver só.
Nada disso faz sentido. O argumento dos juros reais baixos busca justificar o manejo da política monetária olhando no espelho retrovisor. Se olharmos para frente, o quadro é outro. Ao comparar a inflação esperada para os próximos doze meses com as taxas de juros prefixadas para este mesmo período, o que vemos é que os juros reais podem superar 8% ao ano. Claro que há risco da inflação superar as expectativas, mas este percentual é o maior desde novembro de 2008. A diferença entre juros reais ex-post (IPCA acumulado contra Selic) e juros reais ex-ante (inflação esperada contra juros prefixados) está hoje em torno de 5,7 pontos percentuais, uma das maiores desde 2003. Em outras palavras, o mercado já fez o que o Banco Central quer fazer. Os juros já subiram e a expectativa de inflação já caiu. O argumento da insuficiência da política fiscal, por sua vez, também merece ser qualificado. É tentador acreditar que política monetária e fiscal são intercambiáveis em toda sua extensão. Na falta de uma, é preciso mais da outra. Mas não é assim tão simples. Em texto de 2004 (“Fiscal Dominance and Inflation Targeting :Lessons From Brazil”, NBER), o economista Olivier Blanchard defende a atitude do Banco Central brasileiro quando este deixou de elevar as taxas em 2002, a despeito do aumento da inflação. O argumento é que uma alta de juros naquela altura poderia elevar a percepção de risco de insolvência, causando depreciação ainda maior da moeda e, consequentemente, mais inflação. Não é tão diferente a situação atual. As agências de risco mantem um carinho especial pela trajetória da relação dívida/PIB. Ao elevar a despesa financeira (e, portanto, a dívida), um aumento dos juros deteriora esta relação e aumenta a percepção de risco, o que pressiona o câmbio e – bingo – eleva a inflação. Juntando as pontas : o efeito pode ser contrário ao que se deseja. O economista-chefe da Standard & Poors, Joaquim Cottani, em artigo recente (“ Desequilíbrios da economia pedem medidas inovadoras” , Valor Econômico, 28/12/2015) sublinha a importância do custo financeiro para a dinâmica da dívida e adverte que com um déficit nominal tão alto (9% do PIB), “o superávit primário necessário para que a dívida não cresça é de 4% do Pib, que é um nível tão alto que não é crível que o governo (…) consiga atingi-lo”. Finalmente, o argumento de que é preciso mais contração da demanda para refrear os preços livres é tão equivocado quanto cruel. Tivemos em 2015 um ajuste de preços relativos de proporção inédita. Tanto o dólar como a energia elétrica, ambos cruciais na formação de preços, fecharam o ano com uma alta em torno de 50%. A inflação só não aumentou mais porque a recessão foi avassaladora. Com nova retraçãodo PIB já contratada para 2016 e sem outros ajustes desta magnitude, é mais do que provável que os preços livres subam menos daqui para a frente. Não precisamos aprofundar a recessão.
Ganharíamos todos se o Banco Central chamasse a si a responsabilidade de liderar o debate sobre a ineficácia da política monetária e propusesse medidas estruturais que tornassem desnecessária a manutenção de juros altos por tanto tempo. Ao restringir sua atuação a apertar o botão dos juros altos, a autoridade monetária se equivoca , lava as mãos e deixa de colaborar como poderia com sua competência técnica. Mais juros agora significam mais recessão, queda da arrecadação, aumento do déficit e da dívida.
Luis Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com