O Estado de São Paulo : 13.07.2015

“Quando eu sou boa, eu sou muito boa, mas quando eu sou má, sou muito melhor”, dizia Mae West. Sem a mesma graça e picardia, o Banco Central parece ter se inspirado na frase da atriz americana. Durante vinte meses iniciados em setembro de 2011, a autoridade monetária patrocinou cortes da taxa Selic, que passou de 12,5% para 7,25%. A queda dos juros continuou mesmo após julho de 2012, quando o IPCA acumulado em doze meses engatou uma sequencia de nove elevações mensais consecutivas. Em abril de 2013, fim da aventura, os juros reais líquidos eram negativos. Neste período, foram gerados 1,3 milhão de empregos formais e  a taxa de desemprego girou  em torno de 5,5%. Em 2012 , a concessão de crédito para pessoas físicas cresceu 35%. A inflação só não escapou do controle porque os preços administrados cresceram apenas 1,5% nos últimos doze meses até abril de 2013, puxados por uma queda de 16% nos preços da energia elétrica. O atual ciclo de alta de juros já dura vinte e oito meses e é o mais longo desde a introdução do regime de metas. Na sua fase mais recente, a taxa Selic tem que esticar mais e mais o pescoço para dar conta do choque provocado pela liberação de preços represados, que fará com que o IPCA em 2015 seja o mais alto dos últimos doze anos. Até maio último, o aumento anual dos preços administrados superou 14%.Também o dólar deu sinal de vida : no mesmo período, a moeda americana subiu 38%. Toda a bondade que o Banco Central teve em 2011-2013 se reverte agora em taxas de juros que beiram o sadismo.

A questão que se coloca, portanto, é até que ponto há sentido em elevar os juros em um contexto de franca recessão. O dilema entre nível de atividade e inflação é tema recorrente na literatura econômica. A escolha está entre trazer a inflação rapidamente de volta ao patamar desejado, exacerbando a queda no nível de atividade, ou acomodar o choque de maneira gradual, justamente para minimizar o impacto sobre o emprego e a renda. Esta escolha remete à distinção clássica entre regimes de meta estritos e flexíveis. Enquanto no primeiro a autoridade monetária tem como única preocupação  a meta inflacionária, no regime flexível o Banco Central também pondera, de alguma forma, o impacto dos juros altos sobre a economia real. Mervyn King, presidente do Banco Central do Reino Unido entre 2003 e 2013,  cunhou a expressão  “inflation nutters” para se referir aos regimes estritos (“nutter” é uma gíria inglesa para uma pessoa obsessiva ou insana). O Banco Central brasileiro, depois de anos de bondade, insiste em prometer que o IPCA será trazido na marra para 4,5% no próximo ano, o que só será possível se a recessão se estender ao longo de 2016.  Considerando as previsões do mercado, a taxa de inflação em 2016 será 3,5 pontos percentuais mais baixa que a de 2015, o que configura  a maior queda anual desde 1998. É uma queda histórica, mas o Bacen acha pouco. A adoção de uma política estrita de meta de inflação que releva o fato de que a economia brasileira passa por um ajuste de preços represados conduz a um exercício de penitência, ainda mais no contexto de uma política fiscal contracionista.

As atas do Copom são muitas vezes tão claras quanto as letras do Djavan , mas os analistas versados em ‘coponês’ anteveem duas novas elevações da Selic, levando a taxa para 14,5% no final do ano. É muito. A elevação continuada dos juros trará a tona pelo menos quatro problemas da mais alta gravidade. Em primeiro lugar, uma taxa Selic exagerada solapa o ajuste fiscal, já que implica despesas com juros cada vez maiores. Para o período de doze meses terminado em maio último, o total de juros pagos pelo governo central é equivalente à toda arrecadação do imposto de renda, alcançando R$ 350 bilhões. Gasta-se com juros em um mês mais do que com Bolsa Família em um ano. Na outra ponta, juros altos também aprofundam a recessão, o que provoca queda na arrecadação de impostos, inviabilizando a meta fiscal.  O segundo problema, desdobramento do anterior, é que juros muito altos aumentam o risco de rebaixamento do Brasil pelas agências internacionais de risco, já que elevam a relação dívida/Pib. A dívida pública bruta hoje é  75% maior que a dívida que a presidente Dilma herdou de Lula e atinge R$ 3,5 trilhões. Ela cresceu nada menos que R$ 642 bilhões nos últimos doze meses até maio. Este valor é parecido com o  aumento da dívida de todo o segundo mandato de Lula. Em terceiro lugar, juros exagerados tem impacto avassalador sobre a distribuição de renda, já que premia os rentistas com receitas financeiras absurdamente generosas  (mas  a ingratidão, esta pantera, faz com que eles peçam a queda da presidente Dilma). Por último, e talvez o mais importante, juros sádicos não se coadunam com uma crise política cujos desdobramentos são inimagináveis. Pode-se argumentar que o Banco Central deve se manter apartado das querelas e imundícies que caracterizam o momento por que passamos, mas o fato é que ignorá-las pode ser contraproducente e restringir ainda mais o raio de manobra de que dispõe o Ministro da Fazenda. Basta lembrar que quanto maior for a recessão, fomentada pelos juros altos, maior a disposição do Congresso em aprovar medidas populistas pretensamente compensatórias que tornam o futuro da economia brasileira ainda mais obscuro. O Bacen é um órgão técnico e uma ilha de excelência profissional no deserto do Planalto Central. Mas a ele não é vedado pensar além de seus elegantes modelos.  Ao persistir elevando juros de forma obsessiva, ele pensa em derrubar a inflação. Errando a dose, pode ajudar a derrubar também o governo.    

Luis Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com