O Estado de São Paulo: 03.06.2013

O mundo mudou – e vai mudar mais. Cinco anos após o início da crise internacional surgem os primeiros sinais de que a economia americana está ingressando em uma fase de crescimento mais consistente, o que sugere aumento dos juros em algum momento, pondo fim à era do dólar barato. Outra peça do quebra cabeças que assume nova feição é a desaceleração deliberada do crescimento chinês. Aumentam as evidências de que o governo da China passará a privilegiar o aumento do consumo, em detrimento dos investimentos, buscando colher maiores benesses do crescimento econômico. Uma China mais lenta e uma economia americana mais rápida alteram o paradigma que caracterizou a economia mundial nos últimos anos.

Esta alteração surge no contexto de uma rápida deterioração do balanço de pagamentos do Brasil. Nos últimos doze meses terminados em abril, o déficit em transações correntes alcançou US$ 70 bilhões, recorde histórico. Entre 2010 e o final do ano passado este indicador oscilou em torno de US$ 50 bilhões negativos. Em apenas cinco meses, aumentou em US$ 20 bilhões. Um modelo econométrico baseado no amortecimento exponencial duplo sugere que poderemos alcançar US$ 97 bilhões no final de 2013 (sim, os modelos mentem, mas esta não é uma boa mentira). Vários analistas se apressam em lembrar que este rombo é financiado pelos investimentos diretos estrangeiros, um dinheiro “bom” porque “vai para o setor produtivo”. Há um duplo equívoco aqui. O primeiro é que a participação do investimento direto no financiamento do déficit em contas correntes tem caído de forma espetacular e, pela primeira vez em dez anos, já não é o suficiente para zerar o déficit. Nos quatro meses de 2013, os investimentos diretos não chegaram a 60% do déficit em transações correntes. O segundo engano é que não necessariamente estes investimentos redundam em aumento da produção. Parte relevante desta rubrica – algo como 20-25% – é registrada na forma de empréstimos entre empresas, ou seja, a matriz no exterior empresta dinheiro para a filial brasileira, o que significa que este dinheiro “bom” pode estar simplesmente usufruindo da boa hospitalidade dos juros brasileiros, algo que não é privilégio dos bancos e investidores. A desaceleração da economia chinesa e o fim da hemorragia de capitais internacionais promovida pelo banco central americano podem agravar este quadro. Outro ingrediente neste caldeirão de preocupações é o desempenho pífio do Pib no primeiro trimestre. O IBGE tem o hábito de divulgar a taxa dessazonalizada, que subiu 0,6%, mas o dado bruto revela que o produto do primeiro trimestre caiu 2,7% em relação ao último trimestre de 2012. É uma queda maior do que a que tivemos em 2010 e 2011, apesar de indicar uma modesta recuperação na margem.

Tudo isto redunda em maior pressão sobre a taxa cambial. Não é demais lembrar que o crescimento econômico que o Brasil experimentou até recentemente não teria sido tão vigoroso na ausência de um fortalecimento da nossa moeda. Foi a valorização do real que impediu que o aumento da demanda impulsionada pelo então baixo endividamento das famílias se transformasse em mais inflação. Agora, ao revés, a deterioração do cenário externo poderá levar à desvalorização do real. O Banco Central poderá regular  esta tendência vendendo reservas ou criando estímulos para a entrada de recursos financeiros. Mas não poderá repor as condições externas anteriores. Um dólar mais caro poderá atrapalhar a inflação, mas nem tudo é má notícia. O governo imagina que a desoneração tributária e o estímulo ao consumo poderão revitalizar os investimentos industriais. O raciocínio é falacioso. Menor carga tributária poderá elevar as margens de lucro e angariar a gratidão dos setores escolhidos, mas o investimento depende mais da expectativa de lucro do que  do lucro corrente. É aqui que voltamos ao risco da inflação. A expectativa de lucro dos setores que concorrem com produtos importados é medíocre porque a inflação brasileira é mais alta que a dos nossos parceiros comerciais. A inflação brasileira é componente primordial do custo-Brasil. É de todo conveniente colocar o câmbio em seu lugar, como parece já estar ocorrendo. Não existe, claro, uma taxa de câmbio “correta”, mas o cálculo da Funcex para o câmbio real indica que a taxa do primeiro trimestre de 2003 era 88% mais alta que a taxa do primeiro trimestre deste ano.  Se o câmbio deve subir para repor as condições de crescimento dos investimentos industriais, algo essencial para a aceleração do Pib, é necessário   que a inflação esteja sob estrito controle, o que ajuda a entender a recente elevação dos juros. Mas isto não basta. Para que as chances de êxito sejam relevantes, é fundamental uma guinada na política fiscal expansionista. O superávit primário no primeiro quadrimestre de 2013 foi de R$ 26,8 bilhões, 40% menor que no mesmo período do ano passado. Não faz sentido frear a economia com juros mais altos e ao mesmo tempo pisar no acelerador dos gastos  públicos. É néscio supor que os juros cuidarão da inflação enquanto o aumento dos gastos públicos se encarregará  de dar propulsão ao crescimento. O que se requer é uma política coesa de combate à inflação para que o crescimento possa acelerar logo mais adiante. O dilema, portanto, não está entre inflação e crescimento, mas entre crescimento medíocre hoje ou crescimento acelerado no futuro. Se a escolha for a segunda alternativa, é preciso uma desaceleração dos gastos públicos. Sem a colaboração da política fiscal, a inflação não retrocederá, o crescimento do Pib continuará tacanho  e a  popularidade da presidente sangrará em gotas.

(*)Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com.