O Estado de São Paulo : 05.11.2012
Com tripé ou sem tripé, a política econômica mudou. O câmbio ficou praticamente fixo, os juros caíram muito, o superávit primário foi reduzido e a inflação será o que for possível. A queda dos juros é particularmente impressionante. Em setembro, a taxa Selic ficou em 0,54%, a mais baixa da série histórica (“nunca, na história deste país…”). Ficaremos assim por muito tempo, até as circunstâncias exigirem o contrário.
Esta mudança radical é uma decisão técnica ou meramente política? Esta pergunta é ingênua, mas traz uma série de implicações. Pode-se escapar da dúvida argumentando que a administração da política econômica é sempre (logo, nunca “meramente”) política, mas a dúvida persiste. Por decisão ‘política’ pode-se entender duas coisas, parecidas, mas diferentes : (i) algo que convenha apenas ao governo, em detrimento da maioria dos eleitores e (ii) algo que surta resultados positivos no curto prazo, mas que acarrete dificuldades no futuro. A primeira alternativa tem vida curta em regimes democráticos. A segunda é mais interessante e remete ao clássico dilema intertemporal. Sem considerar a eficácia da política monetária em economias indexadas e como política fiscal frouxa, o uso de juros altos pode ser visto como um preço a ser pago no presente para ter o benefício de uma inflação mais baixa adiante. Uma escolha em tudo assemelhada à decisão de comer fruta ou doce na sobremesa. Dilemas intertemporais são objeto de estudo recente por parte de economistas, que conseguiram complicar bastante este assunto aparentemente simples. Os curiosos poderão se socorrer no interessante texto de Daniel Read, da London School of Economics(“Intertemporal Choice”, Working Paper LSEOR 03.58).
A questão é que a conveniência “política” dos juros baixos, ainda que seja picante, pressupõe duas hipóteses. A primeira é que os eleitores deixam-se enganar repetidamente, da mesma forma que Charlie Brown sempre acreditou que Lucy seguraria a bola até ele chutar. A segunda é que o Bacen teria abandonado sua função institucional que é a de, justamente, arbitrar este conflito intertemporal e antecipar os efeitos colaterais de uma política voltada para o crescimento no curto prazo.
Não faltará quem pense que esta mediação é desnecessária e que as pessoas em geral podem se responsabilizar por suas escolhas coletivas. No limite da imaginação, seria possível conceber que decisões sobre juros poderiam ser tomadas diretamente pela população. O que aconteceria se todo cidadão fosse membro do Copom ? Qual é a chance de que decisões tomadas por um grande grupo de pessoas sejam melhores que as tomadas por um pequeno grupo de especialistas? James Surowiecki , jornalista do The New Yorker, escreveu um livro inteiro para defender a tese de que isto é viável (“The Wisdom of Crowds”, 2004). Através de uma série de evidências anedóticas, ele tenta vender a ideia de que a inteligência coletiva gera soluções superiores, mesmo para questões que envolvem complexidade técnica. O argumento contrário – de que a voz do povo não é a voz de Deus – é mais fácil de defender. Os exemplos históricos de democracia direta sugerem que a sabedoria popular é duvidosa e rarefeita. O caso da Proposição 13, aprovada na Califórnia em 1978, é sugestivo. Por meio desta iniciativa, limitou-se o poder de taxar os imóveis. O que parecia inicialmente interessante – pagar menos impostos – acabou resultando em crise financeira no setor público e forte transferência do poder local para a esfera estadual, algo antagônico ao credo conservador que inspirou a proposta. Nos mercados financeiros, os exemplos de loucura coletiva são abundantes, como mostram as bolhas especulativas, que estão longe de ser um fenômeno da modernidade e retratam o “carnaval do capitalismo”, nas palavras do historiador Edward Chancellor (“The Devil Take the Hindmost”, 1999).
Aceita a desconfortável hipótese de que os economistas são socialmente uteis no uso de sua capacidade de ajudar uma democracia representativa a tomar decisões cujas consequências se desdobram no tempo, como mitigar o risco da prevalência sistemática dos interesses de curto prazo? No caso da inflação brasileira, seria conveniente começar pela singela admissão por parte do governo de que uma inflação baixa é um bem público que beneficia mais que proporcionalmente as pessoas de menor renda. Combater a inflação não é limitar o crescimento, mas garantir que ele seja perene. Também não seria demais atribuir responsabilidades e estabelecer uma ‘política de consequências’. Em apenas quatro dos treze anos em que vivemos sob o regime de metas, a inflação ficou abaixo do alvo. Para uma meta acumulada desde 1999 de 81,4%, registramos um IPCA de 146%. Um desempenho, digamos, menos que espetacular. Pelas regras atuais, isto é resolvido através de uma explicação protocolar do Banco Central e causa menos comoção do que um gol anulado na Serie B. Falta também ambição (“ousar lutar, ousar vencer”, diziam as pichações na USP nos anos 70). Desde 2005 a meta está empacada nos 4,5% ao ano, muito mais alta que a inflação dos nossos principais parceiros comerciais, o que é particularmente preocupante depois que a flutuação do câmbio foi restringida. A responsabilização do Banco Central pelo cumprimento rigoroso da meta não seria razoável, por outro lado, se não houvesse uma convergência de esforços da política fiscal. Tudo isto está longe da agenda atual. O sistema de governança que escolhemos não estimula a perseguição de objetivos de longo prazo. É fácil prometer e não cumprir. Resta confiar na memória do eleitor e na sua capacidade coletiva de aprender com os erros do governo.
(*) Economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com .