Valor Econômico: 23.11.2011

A economia americana se estrebucha para sair da estagnação e  a União Europeia usa as tripas para evitar uma separação litigiosa. Os analistas mais céticos só não estão mais pessimistas porque são comedidos e sabem que vão precisar de muito mais pessimismo se a China tiver problemas – melhor economizar agora para não faltar no futuro. O Armagedon parece estar próximo. E, no entanto, enquanto Deus não derrama o justo juízo sobre a humanidade, o investimento estrangeiro direto (IED) no Brasil só faz aumentar. Nos últimos doze meses, o volume líquido internalizado supera US$ 80 bilhões (incluindo repatriações de empresa brasileiras), o que indica que teremos neste ano mais que o dobro de investimentos registrados no ano passado (ou o equivalente ao total acumulado entre 1971 e 1998). Não é pouca coisa.

Este desempenho espetacular abriu espaço para duas interpretações algo exageradas. O governo, por dever de ofício, estimula a interpretação de que estes números gigantescos atestam o sucesso continuado da política econômica dos últimos anos. É como se, finalmente, o mundo, mesmo combalido, reunisse forças para redobrar suas apostas no futuro brilhante do Brasil. Enquanto a crise grassa lá fora, aproveitamos para alavancar os investimentos. Os mais entusiasmados vão além e lembram que este é um ‘dinheiro bom’, já que, acredita-se, é aportado para investimentos de longo prazo, que geram empregos e garantem o aumento da produção e da renda. Esta explicação é generosa, mas seria melhor ainda se fosse verdadeira. Entre outros hábitos estranhos, os economistas gostam de chamar coisas diferentes pelo mesmo nome. Neste caso, o que se chama de ‘investimento’ estrangeiro não tem correspondência com a noção de aumento de capacidade produtiva, a formação bruta de capital fixo calculada pelo IBGE,  o que explica o fato de que a expansão espetacular do IED vem convivendo com um desempenho medíocre da taxa de investimento. Ou seja, em uma concepção estrita, o IED não é necessariamente investimento, já que inclui mera troca de ativos (a compra de uma empresa brasileira por uma multinacional) ou empréstimos a subsidiárias aqui localizadas, o que não  significa aumento da capacidade produtiva. Outro contraponto é que, assim como os carros, os ternos e os restaurantes, as empresas brasileiras também estão muito caras, o que torna mais difícil explicar este voraz apetite dos estrangeiros às voltas com uma crise da qual não se enxerga o fundo. Também aqui não parece ser o paraíso do empreendedorismo. Relatório preparado pelo Banco Mundial (“Doing Business 2011”) mostra que nunca foi fácil, mas está ainda mais difícil fazer negócios no Brasil. Entre 183 países analisados, caímos da modesta 124ª posição em 2009 para o modestíssimo 127º lugar agora. Um desempenho menos que espetacular, vamos convir. Difícil acreditar na tese de que o crescimento do IED é apenas testemunho de nossas consagradoras virtudes.

Por estas e por outras, há também quem prefira lembrar que o enorme diferencial entre as taxas de juros internas e internacionais pode estar estimulando a entrada de recursos que apenas passam férias por aqui, tirando proveito das benesses da taxa Selic. O que se registra como ‘dinheiro bom’ seria, na verdade, o dinheiro ‘ruim’ dos especuladores do mercado de renda fixa, cuja vida foi dificultada pelo aumento da alíquota do IOF de 2% para 6% no ano passado. Mais uma vez, os espertalhões encontraram uma brecha para continuar tirando proveito do ganho fácil proporcionado pelos juros brasileiros. Esta visão mais picante da realidade esbarra em pelo menos três contestações. A primeira é que o fluxo de IED começou a subir antes, não depois, da aplicação do IOF. Um curioso caso de premonição. Mais instigante é constatar que a partir de abril de 2011 os empréstimos inter-companhias registrados como investimento estrangeiro passaram a pagar a mesma taxa de IOF que as aplicações em renda fixa com prazo inferior a dois anos. Outro embaraço à tese conspiratória é que a quantidade de novos registros de investimento estrangeiro assim como o número de receptores destes recursos ,divulgados recentemente pelo Banco Central, mostram inequívoca estabilidade – contrariando o que seria de se esperar se o aumento do IED fosse determinado apenas pelo diferencial de juros.

O fato é que é pouco se sabe sobre os investimentos diretos, até porque não cabe ao Banco Central monitorar o que acontece depois que os recursos são internalizados. O forte afluxo destes recursos recentemente nem nos autoriza a proclamar a supremacia da economia brasileira no meio da turbulência internacional, nem dá guarida à tese conspiratória de que este capital é meramente especulativo. É sempre uma platitude dizer que a verdade está no meio mas talvez estejamos vivendo uma situação que combina os dois extremos. O saldo acumulado em doze meses dos empréstimos saltaram de US$ 3,1 bilhões em setembro de 2010 para US$ 16,1 bilhões em setembro de 2011, mas isto apenas retoma o patamar observado no começo de 2009. De mais a mais, faz parte do trabalho de qualquer CFO global administrar o caixa de forma a maximizar resultados, o que implica muitas vezes ser devedor em países onde os juros são baixos e aplicador onde eles são altos. Também fica evidente, por fim, que é falsa a analogia entre reservas internacionais do país e a poupança que as pessoas comuns fazem para usar nas adversidades. Parte significativa da formação das reservas nestes últimos anos teve como contrapartida o forte crescimento da dívida externa privada, que desde 2007 supera a dívida pública externa. Uma reversão nas expectativas otimistas dos investidores estrangeiros, qualquer que tenha sido sua motivação original, pode alterar este quadro aparentemente confortável em pouco tempo. As reservas brasileiras não são do Brasil.

(*) Luís Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com .