O Estado de São Paulo : 06.08.2011

Depois de tórrida paixão e juras de amor eterno parece que a fascinação dos analistas internacionais pela economia brasileira arrefece. Aqui e ali, lentamente, surgem comentários que levantam dúvidas sobre a consistência do crescimento que temos festejado. O argumento mais recente é tão dramático quanto equivocado. Há cassandras que defendem a ideia de que a economia brasileira está se aproximando de um colapso provocado pelo esgotamento de um ciclo de crédito. Com a alta das taxas de juros, elevou-se o comprometimento com o serviço da dívida, que teria alcançado 28% da renda, contra 16% nos EUA. A inadimplência cresce e os bancos reduzem os empréstimos, o que só faz agravar o quadro. Como normalmente o crédito deteriora apenas depois da queda da renda e do emprego, esta antecipação indicaria um problema estrutural de grandes proporções.

Ora, é fato que a inadimplência tem crescido, no rastro das medidas anti-inflacionárias tomadas pelo próprio Banco Central. Mas há vários elementos que desautorizam a previsão que estamos no limiar de uma ruptura. Em primeiro lugar, o sistema bancário brasileiro sempre foi estritamente normatizado pelo Banco Central, que nunca embarcou na ideia de desregulamentação. O mercado de produtos derivativos por aqui continua incipiente e na sua quase totalidade os empréstimos permanecem nos livros dos bancos originadores até o término de seus respectivos prazos. Isto induz os emprestadores a uma análise mais rigorosa dos riscos de crédito, já que a relação é duradoura. Também os empréstimos imobiliários representam entre nós uma pequena fração do crédito total (4%). O núcleo da crise financeira que ainda assola os países ricos foi o mercado imobiliário justamente porque a concessão indiscriminada de crédito – que era repassado adiante numerosas vezes mediante a utilização de engenhosos derivativos – gerava a demanda necessária para a valorização dos próprios ativos que garantiam estes empréstimos. Disto resultou um circulo vicioso que estimulava novas concessões de empréstimos nas quais pouco se analisava a capacidade de pagamento do mutuário, já que a valorização da garantia tornava o negócio interessante. Não temos nada disso aqui.

Nossos problemas são outros. Nada indica que aqui teremos uma súbita parada no crescimento por conta da necessidade de digerir dívidas do passado. A inadimplência, ainda que alta, está sob total controle, os bancos são sólidos e rentáveis e o crédito  caminha para um pouso suave. Claro, o Brasil não é uma nova China. Nos embriagamos com o crescimento de 7,5% no ano passado, o maior desde 1986,  enquanto há exatos vinte anos  consecutivos a China cresce acima deste nível. Mas também não estamos encalacrados com dívidas que esclerosam os dutos econômicos e impedem o crescimento.  Em que pese o aumento do crédito, o total da dívida como proporção da renda líquida das famílias está em 42%, muito baixo do mesmo indicador para o Reino Unido (171%), EUA (104%), Alemanha (99%) ou Itália (88%).O total de crédito como proporção do PIB estabilizou-se, depois de forte crescimento, em 46-47% do PIB, com apenas 37% deste montante dirigido para consumidores pessoas físicas.

O cálculo do comprometimento da renda é de metodologia frágil e impede qualquer conclusão. Não há risco de estouro da bolha de crédito pela boa razão de ela não existe. O gato subiu em outra árvore. Melhor seria nos preocuparmos com os juros altos, com a apreciação da exagerada do real, que pode reverter e assustar os incautos quando o quadro internacional não for tão favorável para nós, com a enorme carga tributária que recicla recursos através do governo e transforma dinheiro bom em dinheiro ruim e, principalmente, com a incapacidade de reduzir o crescimento dos gastos públicos , o que ameaça a inflação. Nossa agenda está cheia de problemas. Não precisamos nos importar com falsas questões.

* Luís Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. luiseduardoassis@gmail.com .