O Estado de São Paulo: 01.06.2011
Talvez apenas por dever de ofício, o governo brasileiro tem se jactado profusamente do fato de que o Brasil não só escapou da crise financeira internacional como apresenta desde então indicadores que nos deixam em posição destacada perante o resto do mundo, de quem arrancamos tardio reconhecimento. Não deixa de ser verdade, mas uma visão mais humilde pode ser de maior serventia. É bom lembrar que a crise não nos pegou em cheio muito mais por conta de características estruturais da economia brasileira do que em razão da inquebrantável solidez da política econômica. De forma muito abreviada, a crise que ainda hoje grassa foi provocada por uma série de fatores estranhos ao nosso meio: um longo período de juros muito baixos, que alimentou a securitização em massa de ativos mobiliários de alto risco que foram retirados dos ativos dos bancos através de uma distribuição internacional facilitada pela existência de veículos financeiros à margem da regulamentação dos bancos centrais. Aqui temos juros persistentemente altos em uma economia relativamente fechada caracterizada por um mercado financeiro não sofisticado, onde os empréstimos mobiliários são ainda incipientes em um contexto de forte regulamentação bancária. Para melhorar um pouco, os únicos bancos internacionais com operações de varejo no Brasil (HSBC e Santander) estavam, coincidentemente, longe do epicentro da crise. Some-se a isso o fato de que nossas exportações não carregam o PIB nem se destinam majoritariamente a países onde a crise foi intensa – caso do México, por exemplo, que amargou uma queda do produto de 6%, mesmo sem ter participado da festa. Também a reação dos países ricos à crise nos favoreceu. A queda dos juros e as fortes injeções de liquidez impulsionaram os preços das commodities exportadas pelo Brasil. Juros muito baixos lá fora e ainda altos aqui permitiram ganhos de arbitragem, ajudando a elevação das reservas. Maior demanda por reais implicou forte valorização da moeda, aliviando a pressão inflacionária que se esperaria da aceleração do crescimento. Tudo muito conveniente.
É leviano, no entanto, daí concluir que a bonança atual reflita apenas nossos exitosos esforços para colocar a casa em ordem. O alinhamento de planetas que tem permitido este excepcional desempenho não está para acabar, mas não vai durar para sempre. Cedo ou tarde os juros internacionais voltarão a subir, o que pode elevar a cotação do dólar. Um dólar mais forte pressionará a inflação, induzindo a nova elevação dos juros internos, com consequências negativas sobre a produção e a renda. Pode-se argumentar que o Banco Central regulará esta pressão com a venda de reservas. Aqui também cabe alguma modéstia. Ainda que seja impossível estimar com exatidão, parcela relevante das reservas tem como contrapartida dívida assumida pelo setor privado brasileiro (desde o final de 2009 a dívida externa privada subiu 70%). Não é improvável que uma virada nas condições internacionais estimule o retorno dos dólares que vieram passar férias no Brasil, o que se não é uma catástrofe, é garantia de emoções fortes. Outro risco é o desaquecimento da economia chinesa, às voltas com uma inflação acima do esperado. Isto poderia impactar o desempenho das exportações e ampliar ainda mais o déficit em transações correntes, que está aí a indicar que gastamos mais do que podemos. Nada demais enquanto a liquidez internacional adquire proporções hemorrágicas. Mas até quando?
Seria prudente assumir como hipótese de trabalho que o que estamos vivendo é uma fase circunstancialmente favorável, cujas razões essenciais estão além do nosso controle. Transformar esta fase em uma era de prosperidade permanente exige a retomada de uma agenda de reformas essenciais, hoje esquecidas pelo torpor do crescimento. Antes de celebrar a vitória, melhor usar este tempo que ganhamos para assegurar que ela será duradoura.
* Luís Eduardo Assis é economista. Foi diretor de política monetária do Banco Central do Brasil e professor da PUC-SP e FGV-SP. Email: luiseduardoassis@gmail.com.